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Hoje choveu sobre a minha infância

 
Hoje choveu sobre a minha infância. Todos os vestígios que os meus pés deixaram no chão desapareceram. Tento lembrar-me dos meus antepassados. Alguns retratos da minha mente vêem-me à memória, quantidades indeterminadas de imagens. A praça cheia de produtos naturais no centro de Moscavide. As árvores que dormiam ao peso do calor, como a mão quente da minha avó que se colava à minha para não me perder de vista.

Lá na minha terra quem marcava o lento ritmo da vida era o sol, as conversas de vizinhas, as noites de S. João e os Dezembros frios ou chuvosos. Talvez por isso, a minha recordação se concentrasse num rio. Ligeiro o flutuar das águas onde as minhas lembranças se incubavam. Onde a clareza do meu ser era mais translúcida.

- Na terra do meu avô eles pescavam, elas lavavam a roupa e as crianças brincavam por ali. Era outro rio… Nas suas margens vivas, existia um vasto aglomerado de canas doces. Quando eu era pequena, deitada sobre uma cama de palha, contei todas as estrelas do céu e agora não conseguia lembrar-me de quantas eram.

Uma lágrima arrastou-me para a verdade de que tudo era inocência. Talvez porque a maldade na terra do meu avô ou na minha se encontrava disfarçada. Eu era uma criança (para essa criança estas memórias) e hoje era tudo tão vago.

Hoje o sol não iluminava nem esta nem a outra parte de mim.

O sol pairava oscilante na outra margem e a chuva continuava a cair persistente, sobre a minha infância.

Num ímpeto, agarrei em algo e escrevi uma ode metálica que começou com o processo de formação do barulho ao ranger dos meus dedos. Desesperada desci até à liberalidade do silêncio, até ao que de mais profundo tem a recusa das nascentes. Aí a água gelava, o coração estremecia e o vento arrancava as raízes do carvalho-lusitano. Assim as aves não podiam germinar e a paz não arriscava o voo.

A passos largos aproximei-me do tempo das coisas secretas, cavalguei para o lado dos segredos e das mãos dadas onde eu desejei embriagada em perfume, que não mais chovesse na minha infância.

Manuela Fonseca


Manuela Fonseca
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http://ensaios-poeticos.blogspot.com

 
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Manuela Fonseca
 
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Enviado por Tópico
RAMA.LYON
Publicado: 16/08/2010 16:56  Atualizado: 16/08/2010 16:56
Super Participativo
Usuário desde: 01/12/2008
Localidade: LYON-França
Mensagens: 122
 Re: Hoje choveu sobre a minha infância
Com certeza que não irá chover mais sobre a sua infância, mas se tal acontecer tem de comprar um guarda chuva... da adolescência. Estou a brincar, porque gostei imenso deste seu trecho
PARABÉNS

Rama Lyon

Enviado por Tópico
EMontepuez
Publicado: 16/08/2010 18:16  Atualizado: 16/08/2010 18:16
Da casa!
Usuário desde: 10/04/2010
Localidade: Grande Lisboa
Mensagens: 248
 Re: Hoje choveu sobre a minha infância
Já conhecia de outro lado, mas é sempre bom reler e saber que também aqui é partilhado.

Um beijinho
Eduardo