Hoje choveu sobre a minha infância. Todos os vestígios que os meus pés deixaram no chão desapareceram. Tento lembrar-me dos meus antepassados. Alguns retratos da minha mente vêem-me à memória, quantidades indeterminadas de imagens. A praça cheia de produtos naturais no centro de Moscavide. As árvores que dormiam ao peso do calor, como a mão quente da minha avó que se colava à minha para não me perder de vista.
Lá na minha terra quem marcava o lento ritmo da vida era o sol, as conversas de vizinhas, as noites de S. João e os Dezembros frios ou chuvosos. Talvez por isso, a minha recordação se concentrasse num rio. Ligeiro o flutuar das águas onde as minhas lembranças se incubavam. Onde a clareza do meu ser era mais translúcida.
- Na terra do meu avô eles pescavam, elas lavavam a roupa e as crianças brincavam por ali. Era outro rio… Nas suas margens vivas, existia um vasto aglomerado de canas doces. Quando eu era pequena, deitada sobre uma cama de palha, contei todas as estrelas do céu e agora não conseguia lembrar-me de quantas eram.
Uma lágrima arrastou-me para a verdade de que tudo era inocência. Talvez porque a maldade na terra do meu avô ou na minha se encontrava disfarçada. Eu era uma criança (para essa criança estas memórias) e hoje era tudo tão vago.
Hoje o sol não iluminava nem esta nem a outra parte de mim.
O sol pairava oscilante na outra margem e a chuva continuava a cair persistente, sobre a minha infância.
Num ímpeto, agarrei em algo e escrevi uma ode metálica que começou com o processo de formação do barulho ao ranger dos meus dedos. Desesperada desci até à liberalidade do silêncio, até ao que de mais profundo tem a recusa das nascentes. Aí a água gelava, o coração estremecia e o vento arrancava as raízes do carvalho-lusitano. Assim as aves não podiam germinar e a paz não arriscava o voo.
A passos largos aproximei-me do tempo das coisas secretas, cavalguei para o lado dos segredos e das mãos dadas onde eu desejei embriagada em perfume, que não mais chovesse na minha infância.
Manuela Fonseca