O Edital
“Augusto Gil”
Manuel era um petiz de palmo e meio
(ou pouco mais teria na verdade),
de rosto moreninho e olhar cheio
de inteligente e enérgica bondade.
Orgulhava-se dele o professor.
No porte e no saber era o primeiro.
Lia nos livros que nem um doutor,
fazia contas que nem um banqueiro.
Ora uma vez ia o Manuel passando
junto ao adro da igreja. Aproximou-se
e viu à porta principal um bando
de homens a olhar o que quer que fosse.
Empurravam-se todos em tropel,
ansiosos por saberem, cada qual,
o que vinha a dizer certo papel
pregado com obreias no portal.
"Mais contribuições!" - supunha um.
"É pràs sortes, talvez!" - outro volvia.
Quantas suposições! Porém, nenhum
sabia ao certo o que o papel dizia.
Nenhum (e eram vinte os assistentes)
sabia ler aqueles riscos pretos.
Vinte homens, e talvez inteligentes,
mas todos - que tristeza analfabetos!
Furou o Manuel por entre aquela gente
ansiosa, comprimida, amalgamada,
como uma formiga diligente
por um maciço de erva emaranhada.
Furou, e conseguiu chegar adiante.
Ergueu-se nos pezitos para ver;
mas o edital estava tão distante,
lá tanto em cima que o não pôde ler.
Um dos do bando agarrou-o então
e levantou-o com as mãos possantes
e calejadas de cavarem pão.
Houve um silêncio entre os circunstantes
E numa clara voz melodiosa
a alegre e insinuante criancinha
pôs-se a ler àquela gente ansiosa
correntemente o que o edital continha.
Regressava o abade do passal
a caminho da sua moradia.
Como era já idoso e via mal,
acercou-se para ver o que haveria.
E deparou com este quadro lindo
de uma criança a ler a homens feitos,
de um pequenino cérebro espargindo
luz naqueles cérebros imperfeitos.
Transpareceu no rosto ao bom abade
um doce e espiritual contentamento,
e a sua boca, fonte de verdade,
disse estas frases com um brando acento:
" - Olhai, amigos, quanto pode o ensino.
Sois homens, alguns pais e até avós.
Pois por saber ler este menino
é já maior do que nenhum de vós!
José Mota
Poesia de Augusto Gil