Não sou a autora da definição/comparação que ora transcrevo, mas gostaria de ter sido. Acabei de "ouvi-la" no romance que estou lendo e tanto me impressionou a profundidade da sua essência que fiz questão de trazê-la aqui, para compartilhá-la com os leitores que me dão a honra de visitar os meus trabalhos aqui publicados e que tanto agradeço pelo carinho.
"VIVO EM MIM PRÓPRIO COMO NUM TREM EM MOVIMENTO"
“Não entrei nele por livre e espontânea vontade, não pude escolher e sequer conheço o local de destino. Um dia, num passado distante, acordei no meu compartimento e senti o movimento. Era excitante, escutei o barulho das rodas, pus a cabeça para fora da janela, senti o vento e me deliciei com a velocidade com que as coisas passavam por mim. Eu queria que o trem jamais interrompesse a sua viagem. De maneira nenhuma eu queria que ele parasse para sempre em algum lugar.
Foi em Coimbra, num banco duro no auditório, que me dei conta: não posso mais sair. Não posso mudar de linha nem de direção. Não sou eu quem determina a velocidade. Não vejo mais a locomotiva e não posso reconhecer quem a conduz, nem se o condutor parece ser de confiança. Não sei se ele lê os sinais corretamente e percebe quando uma agulha de trilhos está errada. Não posso trocar de compartimento. Vejo pessoas passando no corredor e penso: quem sabe nos seus compartimentos tudo é bem diferente do que aqui. Mas não posso ir lá e ver, pois um cobrador que eu nunca vi e nem vou ver trancou e selou a porta do compartimento. Abro a janela, debruço-me para fora o máximo que consigo e vejo que todos os outros fazem o mesmo. O trem percorre uma sua curva. Os últimos vagões ainda estão no túnel e os primeiros já voltaram para dentro dele. Quem sabe, o trem anda em círculos, sempre, sem que alguém percebam nem mesmo o condutor? Não tenho a menor idéia do tamanho da composição. Vejo todos os outros que esticam os pescoços para ver e entender alguma coisa. Saúdo-os, mas o vento leva as minhas palavras para longe.
A iluminação no compartimento muda sem que eu possa determinar qualquer coisa. Sol e nuvens, crepúsculo e madrugada, chuva, neve, tempestade. A luz no teto é mortiça, torna-se mais clara, começa a ofuscar, treme, apaga-se, volta, é uma lamparina, um castiçal, um tubo de néon cintilante, tudo ao mesmo tempo. A calefação não é confiável. Pode aquecer com calor e falhar com frio. Quando aciono o interruptor, ouço o clique-claque, mas nada muda. Estranho que nem mesmo o sobretudo me aquece sempre da mesma forma. Lá fora as coisas parecem estar indo no seu rumo habitual e normal. Será que isso acontece também no compartimento dos outros? No meu, de qualquer forma, as coisas se passam de forma diferente do que eu esperava, bem diferente. O construtor do trem estaria bêbado? Louco? Um charlatão diabólico?
Nos compartimentos há folhetos indicando o trajeto. Quero saber quais são as estações. As folhas de papel estão em branco. Nas estações em que paramos faltam as placas indicativas. As pessoas lá fora lançam olhares curiosos para o trem. As vidraças estão sujas por causa do mau tempo. Penso: elas distorcem a imagem interior. De repente sinto a necessidade de por as coisas no lugar. A janela está empenada. Grito até ficar rouco. Os outros passageiros batem nas paredes, indignados. Depois da estação vem o túnel. Ele me corta a respiração. Ao deixar o túnel pergunto-me se alguma vez paramos efetivamente.
O que se pode fazer durante a viagem? Arrumar o compartimento. Fixar os objetos para que não trepidem. Mas então sonho que o vento aumenta e arrebenta a janela. Tudo o que arrumei começa a voar. Sonho muito durante esta viagem sem fim: sonhos em que perco os trens e vejo informações falsas nos folhetos de viagem, estações que se dissolvem em nada quando chegamos, guardadores e chefes de estação que surgem de repente do nada com os seus bonés vermelhos. Às vezes adormeço de puro tédio. Mas é perigoso adormecer, só raramente acordo refeito e satisfeito com as transformações. Geralmente fico perplexo com aquilo que encontro ao acordar, tanto dentro quanto fora de mim.
Às vezes me assusto e penso: a qualquer momento o trem pode descarrilar. Sim, esse pensamento na maioria das vezes me assusta. No entanto, existem instantes, raros e incandescentes, em que aquilo me trespassa como um raio de felicidade.
Acordo e a paisagem dos outros passa. Às vezes, passa tão rápido que nem tenho tempo de acompanhar seus caprichos e disparates delirantes, outras vezes, quando insistem em repetir sempre as mesmas coisas, tudo é de uma lentidão dolorosa. Sinto-me aliviado por haver um vidro que me separa deles. Assim, consigo reconhecer os seus planos e desejos sem que eles possam me atingir impunemente. Sinto-me contente quando o trem atinge a sua velocidade máxima e eles desaparecem. O que é que fazemos com os desejos dos outros quando eles nos atingem?
Encosto a minha testa na janela do compartimento e me concentro com toda a minha energia. Quero, pelo menos uma vez, apreender o que se passa lá fora. Apreender e segurar, para que não me escape novamente. Mas isso falha. Tudo passa depressa demais, mesmo quando o trem para em pleno trajeto. Uma impressão apaga a anterior. A memória trabalha a todo vapor, fico quase sem respirar tentando organizar as imagens do que aconteceu, nem esforço inútil por chegar à ilusão de algo inteligível. Sempre chego atrasado, por mais rápido que a luz da atenção corra atrás das coisas. Quando chego, tudo já passou. Sempre acabo perdendo. Nunca estou presente. Mesmo quando, durante a noite, o interior do compartimento se espelha na vidraça.
Adoro túneis. Eles são, para mim, a imagem da esperança: em algum momento tudo voltará a ficar claro. Caso não seja noite.
Às vezes recebo visitas no compartimento. Não sei como isso é possível, com a porta trancada e selada, mas acontece. Geralmente esta visita vem num momento impróprio. São pessoas do presente e do passado. Vêm e vão, conforme querem, não têm respeito e me incomodam. Preciso falar com elas. É tudo provisório, descomprometido, votado ao esquecimento, conversas de trem. Alguns visitantes desaparecem sem deixar rastro. Outros deixam rastros pegajosos e fétidos, não adianta arejar. Nestas horas quero arrancar todo o mobiliário do compartimento para trocar por um novo.
A viagem é comprida. Há dias em que desejo que seja infinita. São dias invulgares, preciosos. Há outros em que fico aliviado por saber que haverá um último túnel em que o trem parará para sempre.”
(in “Trem Noturno para Lisboa”, romance de Pascal Mercier, 6ª. edição, Editora Record)