não tirem o vento às gaivotas - sampaio rego sou eu
pedi a uma cigana que me lesse o futuro. olhou para mim desconfiada. tirou um espelho do bolso. colocou-me frente a frente com os meus olhos. riu-se – perguntou-me o que queria saber que eu não tivesse visto no espelho. queria apenas saber se eu existia para além do meu reflexo. riu-se ainda mais. deixou-se cair entre as mãos e pelo nó dos dedos. chegavam gargalhadas engolidas por um ventre cheio de saber – pediu-me a mão. entreguei-lhe a direita. aquela que escreve as noites – chamou-me aldrabão. disse-me que dentro daquela mão nada existe para além do momento que faz o próprio momento – pediu-me a outra mão. a esquerda. aquela que sempre guardo no bolso das calças com medo de perder a identidade – sentamo-nos num banco de jardim. com vista para uma cidade que guarda o livro do meu baptismo. foi ali que um dia um padre me mergulhou em água que veio dum poço de desejos que não o era. a seguir. ungiu-me. fez-me o sinal da cruz. que mais não é do que uma cruz de alguém que tinha partido pelo peso da dor – abri a mão. suada. trazia impressa a marca das unhas no seu interior. há tanto tempo que estava fechada – tenho medo. sei que é com esta mão que posso perder a vida. posso perder o passado. é por lá que existo – no dedo mindinho. há um terraço com os meus primeiros passos. ainda hoje é lá que moro sempre que quero ver a pessoas perdidas. um dia. será naquela bola vermelha que outrora chutei para um lugar que ainda não descobri. que me encontrarei – hoje sei que era o futuro. perdi-me dentro daquele chuto – olhou-me. destemida entrou com os olhos na palma da mão. dentro das linhas da vida. encontrou a morte. disse-me que estava perto. matou-a com uma reza de esperança. abriu um suco para uma nova vida feita com a alma de um antepassado que vendia toalhas de rosto numa feira às portas da desgraça – os vocábulos eram comidos pelos ouvidos. a ladainha sorvia a realidade, as palavras nasciam aos milhares da palma da minha mão. era como se eu tivesse naquele pequeno espaço a odisseia de omero – fitou-me mais uma vez. pela primeira vez percebi que o seu sorriso eram afinal contracções de dor. inclinou-se sobre o indicador. talvez tivesse umas glosas nas bermas deste dedo. com letra de rascunho. por fim disse-me: morrerás com as palavras a nascer dentro de um nada. será o dia do tudo ou nada.