não tirem o vento às gaivotas - sampaio rego sou eu
certa vez. apanhei um autocarro. o 02.07am – ia sem destino. para mim – todos os outros passageiros pareciam saber o propósito daquela viagem. eu não – apenas gostei do número. o 02.07am. parecia-me bem para número de autocarro – em boa verdade poderia ser 072ma. 702am ou talvez 2.07am. mas não. era o 02.07am – parou em frente a um precipício – o motorista, homem com uma farda que levava duas asas no coração. abriu-me a porta. olhou para mim com os ouvidos nas mãos. talvez não quisesse que fizesse perguntas. disse-me: -espera mas não desesperes pela tua hora. mais tarde ou mais cedo alguém te virá buscar – estava sem horas. possivelmente deveria ter apanhado um relógio com [am] daqueles que são feitos no Japão. que têm os números vermelhos como olhos do demónio que mora na rua 02.07pm – vive no outro lado de mim. escreve poesia nos dias em que os defuntos são todos encaminhados para o céu - gosto deste demónio. sei que no fundo não é mau rapaz. gosta apenas do inferno. penso que já nasceu dentro de um inferno. agora. já não se dá sem aquele mau estar que o faz escrever coisas infernais – raramente o ouço. com o tempo tornou-se silencioso. sabe sofrer para si. anda entretido com aquela mania de escrever os versículos satânicos de almas deprimentes – um dia. um anjo vestido de fato. enviado por um ser que toma conta de todos os homens felizes. veio-lhe dizer que se deixasse de escrever. talvez lhe arranjasse um lugar numa associação de benfeitores do mundo que não sofre com o pensar - mostrou-lhe as mãos, manchadas de negro. negro de carvão. disse-lhe: -já não sei escrever com caneta de aparo d`ouro – este demónio. já só reconhece as letras. que tal como ele. gemem em silêncio. não pelo tempo que a viagem do 02.07am demorou a fazer. mas porque está sem horas e vê o tempo a passar. e o precipício sempre ali. mesmo ali à frente do tempo.