Crónicas : 

O poeta

 
Só de vê-lo dá dó, o Joselito, sessenta quilos de pura amargura, olhos desidratados que nem sequer dão para chorar uma puta de uma lágrima, uma postura que nem para cabide serve, ginga pelas ruas, vende poemas avulso e, da forma como está crítico o país, alguém quer lá saber de poemas para alguma coisa. Diz que está a mando de Deus, servir os homens com poesia que os farão calar e escutar a voz da voz do senhor. Os putos são ranhosos e atiram-lhe pedras à cabeça até haver uma que a vá rachar. Os senhores das boutiques correm-no dali para fora com um gesto hitleriano. Ele obedece e vai para outro lugar onde possa escrever e tentar vender um poema ou outro.

Pelo que sei, a poucos dá a curiosidade de saber o que ele escreve num papel que encontrou no chão. O Joselito é uma paz de alma, come e bebe do que lhe dão, como se fosse um cão de rua a quem se lhe atira os ossos. Neste caso, para sobreviver, tem de ser mais rápido que os cães. E ir de focinho ao destino.
Conheci-o há dias e falei um pouco com ele sobre o dia-a-dia, sobre as suas palavras que, ainda que olhando para mim, ia escrevendo no papel tão magoado quanto ele.

- As pessoas são insensíveis, mano. Ninguém liga puto ao que escrevo
- É, mas tens de ter calma, as coisas boas virão ter contigo, mostra-me aí o que estás a escrever

O dia é uma arte em que ninguém pôs a mão
E a noite é o deus em que iremos desaguar, um dia


- Interessante, meio filosófico. Tens talento, pá!
- Ninguém quer saber de talento para nada, mano, as pessoas só querem é dinheiro para grandes comezainas e orgias com os seus próprios egos.

Falámos durante bons minutos e foi bom saber que ainda existe pessoas que falam das coisas com palavras que se entendam e que, mesmo do avesso, conseguem falar às direitas. Troquei o poema por dois cigarros. Ele preferiu assim. Fiz-me à vida antes que a vida se fizesse a mim, a procurar onde cair vivo, onde o silêncio faz falar.

As contas são várias, como são várias as contas que tenho que dar para pagar as contas. Não adianta ser ladrão porque corro pouco e tenho as unhas dos pés encravadas. Deus não me apurou os sentidos.

A helena aproveitou-se da minha fraqueza e está a apanhar sol nas Caraíbas com um badameco qualquer, a contar notas de cem e a descascar camarões, que é o que ela sabe melhor fazer. Sou, a bem dizer, um rouxinol sem canto. Os dias assim andam, nesta correnteza mal distribuída, uns têm tudo, outros têm todo o nada. Limpo umas chaminés em part-time e valha-me nosso senhor Jesus Cristo o quanto isso me ajuda para fazer andar a carroça e ter alguma coisita no prato.

Passeio no largo mas quem anda ao largo sou eu. Inventar os dias é muita areia para a minha camioneta. O país quer-nos pequeninos, caladinhos como um biscoito. De chaminés estou por aqui. Sonhar alto é uma ameaça, e já se sabe porquê. Não estou aqui para explicar nada. Aliás, nem sei se estou aqui ou na Noruega lá no meios dos bacalhaus a fazer discursos sobre os reis magos. Cansei de estar cansado e fui à procura imediata do Joselito numa de lhe pedir um poema de fé. Não o encontrei. Ao que parece sonhou com a sua morte e realizou-se.
Fiquei tolo porque os sinos não avisaram nada. Mas também não admira, porque, aos pobres, atiram-se para a cova de qualquer maneira.

A rua já não é a mesma rua. É um lugar sem notícias, sem estômago para adorar. Sentei-me onde o Joselito se sentava e pus-me a escrever umas quaisquer memórias que me vinham à cabeça feitos espadachins. Alguém atirou uma moeda que no chão cantou. Ficou a rodar bastante tempo. A moeda reluzia, parecia de prata mas não era. Era uma moeda que alguém atirou em troca do que estava a escrever. O sol batia na cara do fulano. Ao início parecia um anjo medonho mas depois ficou mais nítido. Era o poeta.

- Então mano, por aqui?
- É verdade, a vida dá muitas voltas. Pensei que tinhas morrido, pois disseram.
- E morri. Agora sou adjunto de Deus.

- Não me faças rir, pá. E eu sou quem, a Gioconda?
- Não mano, tu és o próximo a ir. É que Deus está precisando de poetas lá em cima.

Levantei-me, e fui limpar chaminés.
 
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flavio silver
 
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Enviado por Tópico
Alexis
Publicado: 20/07/2010 19:54  Atualizado: 20/07/2010 19:54
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 Re: O poeta para flávio
.um sorriso largo,com ternura.é isso deixo por aqui.
muito bom ler-te,flávio.os que não o fazem,não sabem o que perdem.o que é uma pena.

o meu beijo,
alex

Enviado por Tópico
Conceição Bernardino
Publicado: 20/07/2010 20:03  Atualizado: 20/07/2010 20:03
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Mensagens: 3357
 Re: O poeta
olá Flávio,

ás vezes também tenho dó de não te poder comentar como mereces.

beijo

Enviado por Tópico
HelenDeRose
Publicado: 20/07/2010 20:33  Atualizado: 20/07/2010 20:33
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 Re: O poeta
Ler vc é sempre uma surpresa agarrada ao prazer, flavio, por isso sigo suas pegadas...rs...bjo.

Enviado por Tópico
luciusantonius
Publicado: 20/07/2010 20:55  Atualizado: 20/07/2010 20:55
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 Re: O poeta
Caro Flávio
Não o ler é verdadeiro desperdício. É desconcertante o mundo de imaginação e de humor que mora nessa mente.
Aproveito para o felicitar pelo seu recente livro. Ausência forçada impediu-me de estar presente, o que lamento.

O meu abraço e parabéns
Antonius

Enviado por Tópico
Marcio_JR
Publicado: 23/07/2010 02:09  Atualizado: 23/07/2010 02:09
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 Re: O poeta
Um texto fantástico, Flávio.

Parabéns, e muitos.