Estava impaciente apetecia-me fazer qualquer coisa, mas não uma coisa qualquer, escutei-me e ouvi o vazio, os dias sucedem-se e há sempre mil coisas para fazer, hoje inexplicavelmente tudo parece parado sinto o vazio. Lembro de quando era miúdo, do tempo das férias do nervosismo com milhões de segundos por preencher. Os primeiros dias das férias grandes eram tal e qual o meu dia de hoje, a diferença é que agora as férias estão condensadas numa só tarde de Domingo. Completamente livre, encarno subitamente a criança que trago escondia. Fico irrequieto, apetece-me abanar as casas onde em tempos viviam os meus amigos na expectativa que viessem à janela, não tivessem nada que fazer. Vesti rapidamente uns calções apressei-me a sair, o nervosismo com a excitação fazem cócegas na bexiga, retorno a casa, quis ser tão rápido que a ânsia deixa-me pingar. Dirijo-me para a casa antiga dos meus avós, na garagem está a velha bicicleta parada há uns anos. É uma garagem, transformada em recordações, enormes lençóis brancos cobrem amontoados de objectos perdidos no tempo da infância é lá que está guardada toda a criança que fui. Não lembro há quanto tempo não ando de bicicleta mas lembro o dia da oferta, é inesquecível, recordo com detalhe: – O pai tem uma prenda para ti !. Recordo as palavras, como que libertas neste instante. Encho os pneus com o ar arrecadado na garagem e recordo as emoções do dia em que fui à oficina do Sr. Roxo, orgulhoso como se a partir daquele instante fosse dono do meu destino. Aquele dia destapava a liberdade de umas férias grandes pela frente, de viagens prometidas com os meus amigos, quase todos tinham bicicleta faltava eu. Ao adquirir a bicicleta poderia assim mergulhar no tanque do avô do Miguel, um enorme tanque redondo a 5 km da vila no meio de uma propriedade carregada de laranjeiras. As laranjas eram tantas que, algumas caiam no tanque, flutuavam à tona da água, como os pequenos balões que se costumam ver nas praias a sinalizar as pistas de lançamento dos barcos contra o mar. O avô do Miguel estava lá todos os dias, punha um velho motor a puxar agua para dentro do tanque e às vezes libertava-a vagarosamente por uns caminhos abertos à enxada, matava assim a sede a centenas de pequenas laranjeiras repletas de bolas alaranjadas, bebiam a nossa juventude misturada na água. Não consegui encher os pneus da bicicleta, eram imensas as fendas, parecem varizes causadas pelo tempo. Apressei-me, peguei no carro e fui à antiga propriedade que estava no mesmo sítio com a diferença na estrada que agora é quase toda alcatroada. O que outrora eram campos agrícôlas, agora são quintinhas, terrenos com moradias dispersas mais ou menos isoladas de costas voltadas umas para as outras. Mas a propriedade permanece com a teimosia característica dos sítios mágicos. As árvores parecem menos, dezenas de troncos velhos torcidos e enrugados com algumas laranjas envoltas em teias. Precipitei-me em direcção ao tanque e este minga à medida que me aproximo, vi-o transformar-se num pequeno tanque com um palmo de água estagnada e com laranjas apodrecidas, vivem sapos lá dentro e outros animais verdes. Olhei em redor e não vi ninguém, estava deserto, abandonado na preguiça do tempo. Fiquei triste, a imagem que tinha da infância não correspondia ao que estava a presenciar. Estava tudo a uma escala ridiculamente reduzida. Sentei-me na orla do tanque e escutei-me mentalmente, afinal o que mudara?. A resposta apareceu como soprada entre as velhas laranjeiras. - Tu mudaste, saíste uma criança e voltas diferente, agora aparentas um adulto, escondes a criança que mergulhava aqui, assim como a propriedade esconde a vida que soprava neste pomar. Afastei-me já pela noite perdido nas recordações e quando olhei de longe para me despedir, as laranjas parecem respirar a vida que susteram durante a minha visita, mesmo aquelas laranjas caidas pelo chão emanam o calor de resquícios de vida. Á medida que me afasto pareço mingar, pareço a criança que em tempos mergulhou ali.