Textos -> Outros : 

A GENIALIDADE EM PESSOA -- João Nery Pestana

 
 
Difícil é precisar quem a arte e quem o artista. Quem o criador, quem a criatura, quem o louco ou quem a loucura. Ora um, ora outros, seus feitos, feito verdades inacabadas, encontraram nas páginas do tempo o não espaço perfeito para recriar o seu mundo. E assim, contrariando as predições de todos os vates, que nada disseram a seu respeito, apoderou-se de uma pena que, tendo pena de seus prantos, atendeu-lhe os delírios: haja vida! E a vida se fez. Nascia um amigo sem rosto e sem alma, porém à sua neurastênica imagem e semelhança psíquica, com quem trocou as ingênuas confidências de um menino prodígio. Menino que, como criatura, experimentou a dor da perda precoce, do medo, do exílio e da solidão. Como criador a si mesmo devorou o estro e, com a irreprimível benevolência dos iniciados, poupou a costela do ser criado, retirando das próprias entranhas outros, e tantos que os sucederam, para que se cumprisse o profético: crescei e multiplicai-vos! -- emudecido nas entrelinhas de uma epístola não escrita. Sendo o criador, nada ordenou, nada pediu, apenas sugeriu que salpicassem de sonhos a terra e que todas as artes se submetessem a uma reverificação.

Para que se cumprissem os desígnios de uma inverdade artística, generosamente deu às suas criaturas as próprias mãos. E, numa demonstração de desapego às glórias efêmeras, delegou ao mais simples dos criados o atributo de mestre a quem se submeteu, bem como lhe seguindo o exemplo o fizeram campos, reis e outros inexistentes seres.

Não estamos diante de um ser incriado. Conta-se que seu surgimento se deu no fim do século dezenove. O pai, funcionário público e crítico musical nas horas de ócio, de quem o inquieto menino herdara o gene da arte, o deixou muito cedo, uma perda que, por toda a vida, lacunaria sua inocente alma. A mãe, em seguida, desposada, vai dividir o afeto com membros de uma nova estirpe, deixando ao pequeno gênio sobrados motivos para quedar-se cismativo e absorto ante a voluptuosidade do delírio que lhe perturbava o espírito.

Uns o tinham como louco. Outros o concebiam como um gênio, daqueles que surge a cada mil anos. Quanto a ele por si mesmo, apenas um “fingir dor.” Se ninguém é profeta em sua terra, compreende-se o não reconhecimento de sua MENSAGEM, a perseguição aos seus ideários e a incompreensão dos seus ensinamentos. Teria ele vivido à frente do seu tempo? Quanto tempo? Ou teria sido aquele que haveria de destruir todos os clássicos e reedificá-los sob o primor de uma nova estética? Porém, ao vir despido dos convencionalismos que maculavam a intelectualidade vigente, foi rejeitado, injustiçado e oprimido, principalmente por aqueles que necessariamente deveriam compreendê-lo.

Eis o destino dos homens santos. Não bastasse a demonstração de humildade ao servir quando deveria ser servido, precisou também testificar seus milagres. Conta-se que, ao lançar sua verve no translúcido mar de palavras, tantas e diversificadas foram as produções que as folhas de papel tornaram-se escassas e as almas dos seres insuficientes para absorvê-las. Ainda assim, muitos foram os que o subjugaram.

Viveu esse homem privado de todos os confortos que almejam os mortais. Na solidão de seu humilde aposento, teve como companheiros seus delírios e suas lágrimas e como refúgio “o fundo de uma depressão sem fundo”. Aos quarenta e sete anos, era um velho cansado, tamanho o peso de todas as dores, medos e angústias que jaziam em suas retinas. A causa-morte continua um indelével mistério, como misteriosa também foi sua tenra vida. Sabe-se apenas que, naquela fatídica noite de novembro do ano de mil novecentos e trinta e cinco, seu corpo, ébrio e dorido, entregava-se às agruras da terra, enquanto sua alma, abstêmia liberta, recebia as glórias do universo.

No princípio era o verbo, e o verbo estava com ele, e o verbo era ele. Todos os outros foram feitos por meio dele, e sem ele nada do que foi feito se fez. Nele estava a verve, e a verve é luz da vida. A luz resplandece nas mentes, mas a sua arte prevaleceu sobre ela. Certamente Amém!

João Nery é escritor e poeta
http://jneryliteral.blogspot.com/

 
Autor
JNery
Autor
 
Texto
Data
Leituras
1654
Favoritos
0
Licença
Esta obra está protegida pela licença Creative Commons
1 pontos
1
0
0
Os comentários são de propriedade de seus respectivos autores. Não somos responsáveis pelo seu conteúdo.

Enviado por Tópico
Henricabilio
Publicado: 18/07/2010 18:47  Atualizado: 18/07/2010 18:47
Colaborador
Usuário desde: 02/04/2009
Localidade: Caldas da Rainha - Portugal
Mensagens: 6963
 Re: A GENIALIDADE EM PESSOA -- João Nery Pestana
Um belo texto que retrata um pouco do muito que Pessoa foi (e ainda é na imaginação de cada um de nós, ante a dimensão da sua obra).
Curioso como esta tedência para a solidão e o sofrimento acompanhou a maioria dos melhores poetas portugueses... como se a dor fosse o principal condimento da criatividade.
Um abraçooO!
Abilio