. façam de conta que eu não estive cá .
já quase não se ouvia a noite quando ela saiu porta fora, mundo ao colo, a correr. a rua corria com ela, atrás dela os prédios em fila indiana, sempre ao mesmo ritmo. estacou ao fundo quando avistou um barco a entrar no porto. agarrou-se ao corpo e desatou a chorar. o pequeno barco era feito do papel antigo de um envelope velho, pelo selo datado de mil novecentos e oitenta e sete. dentro esperava-a uma tripulação de memórias inquietas. mortas por a abraçar. os prédios pararam todos atrás dela, com a cidade deslocada a rua encolheu-se num canto, já quase água salgada. ela ouviu um assobio vindo de dentro do barco, levantou-se, olhou o horizonte como quem espera o futuro, mãos abertas, corpo para a frente. no barco olhava-a agora o seu avô defunto. avô - disse ela ao espaço. avô - respondeu-lhe o barco. e o eco da palavra - avô - sentou-se com a rua ao canto. o mundo caiu-lhe. quando o corpo lhe desatou a correr de encontro ao barco. o mundo caiu-lhe. de mundo caído foi, resto de rua abaixo até ao papel do barco. lá chegando sorriu como quem encontra um novo mundo. e uma voz saiu do papel, seca. - onde estavas. onde estavas quando morri. - ela chorou, chorou muito, chorou tanto que o papel do barco, molhado, caiu. ficou um envelope quase barco húmido no chão. disse-lhe - avó, sempre estive aqui.