Crónicas : 

A pátria de chuteiras

 
Já não é de hoje
que o futebol
exerce uma mística
sobre o nosso povo.

A arte e a magia
da esfera denominada
bola ou pelota
- como dizem os argentinos

A todos, indistintamente
- classe social, posição -
contamina e gera um
sentimento poderoso, singular.

Invenção atribuída aos ingleses
mas, com tradições que remontam
a períodos de culturas ancestrais
o futebol é, de fato, um esporte maior

Mesmo aqueles que não curtem
o futebol das ligas, dos campeonatos
regionais ou nacionais
na hora em que a seleção canarinho,

Perfilada em campo,
para o hino nacional,
não há quem não se emocione
com este velho esporte bretão.

A Copa do Mundo,
então, nem se fala,
como se fosse uma arena moderna
é uma disputa que coloca na ponta da chuteira

Muito mais que a exibição
de um selecionado de futebol,
levando a inevitáveis proclamações
de orgulho exacerbado e demonstrações

De superioridade, postura colonialista,
arrogância, prepotência e subestimação
dos adversários, extrapolando o tão
propalado "fair play" ou "say not to racism"

Nesta copa de 2010, não foi diferente,
tanto na convocação do velho e desgastado
slogan "pátria de chuteiras" pelo Dunga,
- que mal soube convocar a própria seleção -

Quanto pelas entrevistas de alguns atletas,
com declarações totalmente descabidas,
menosprezando valores culturais de um povo,
e agredindo gratuitamente o nosso continente,

Como ocorreu com o capitão da Alemanha,
em relação à Argentina, e com esta própria
quando gozou da alegria e do samba brasileiro,
que, aliás, faltou nesta pífia exibição.

Na verdade, toda vez que a seleção
não corresponde à expectativa do povo, da mídia,
logo são procurados e caçados impiedosamente
os culpados, punindo-se exemplarmente,

Ao limiar da execração pública,
aqueles que não representaram à altura
as tradições futebolísticas nacionais,
como se eles - jogadores e comissão técnica -

Fossem os únicos responáveis pelo fracasso -
embora deva-se admitir são eles que jogam e que
são convocados e comandados - então
é preciso uma reflexão mais profunda.

O Brasil - país do futebol? - tem que ganhar
sempre, todas as competições? Já não nos basta
ser pentacampeão e o único a participar de
todas as edições deste torneio apaixonante?

Decerto, que já amargamos tantas derrotas
e decepções nos cenários nacional e internacional
nas políticas públicas, na corrupção endêmica
que assola não é de hoje, o nosso país.

Todavia, não devemos fazer da Copa
o remédio para todos os males que nos afligem
como uma catarse coletiva, nos anestesiamos
momentaneamente com os gols e depois?

É bom ser campeão, ser reconhecido por um
esforço coletivo, ser bem representado - e não precisa dar pontapé no adversário e se transformar em gladiador em campo -

Mas, acima de tudo, aceitar as derrotas
como fazendo parte de toda trajetória humana,
talvez estejamos depositando confiança em demasia,
e menosprezando o poder de fogo dos adversários.

É uma competição que encanta o mundo
A África do Sul foi divina, na melhor
tradição dos tambores, cores e natureza
da gente africana, simbolizada por Mandela.

Que vença o melhor, seja Alemanha, Espanha
O surpreendente e aguerrido hermano Uruguai
ou a laranja mecânica ressurgente da Holanda
que seja uma grande festa, mas que resgate

O amor pelas tradições, pelas cores da bandeira
pela mística da camisa, as lágrimas no hino
a vibração dos torcedores, as ruidosas vuvuzelas
e as manchetes e imagens da mídia,

Aliás, a mídia também precisa se reciclar,
se o comportamento do nosso técnico deixou a
desejar em rudeza e ironia, também a mídia
exagerou a dose, invadindo a sua privacidade

E, de certa forma contribuindo para
gerar um clima desfavorável para os jogadores,
mas, são eles que jogam e, conhecem do ofício
artistas são, todavia humanos e não imbatíveis.

Além disso, essas somas vultosas de recursos
da publicidade sem limites éticos e valorativos - onde quem toma cerveja "é mais que brasileiro",
é um brahmeiro, um absurdo, como o CONAR permite isso.

Enquanto, isso milhões de jovens são induzidos
ao consumo do álcool, aos acidentes fatais e
a inevitável dependência química, isto é ser
brahmeiro? Que tal uma Lei Seca para a propaganda irresponsável?

Para terminar esta longa crônica,
gostaria de retornar ao tema cunhado,
em um período nebuloso de nossa história,
pelo imortal Nelson Rodrigues,

Lembrando que as vitórias por mais bonitas
e desejadas que sejam podem ocultar defeitos,
mascarar torturas - como foi na ditadura em 70 -
e procrastinar a verdadeira liberdade.

Esta liberdade de brincar com o filho,
chutar a bola, com carinho e atenção,
como exercício de cidadania, além da paixão,
e ser solidário não somente com o time do Brasil,

Mas, com a brava gente brasileira,
que torce, sofre, chora e luta
como poucos, pelas paixões de nossa cultura,
e que precisa ser respeitada, defendida,

Em todas as arenas de luta,
por uma vida digna, conquistando segurança,
educação de qualidade, saúde decente, lazer,
acesso ao emprego digno e habitação salubre.

Para tanto, precisamos transpor esta energia
que emana do ritual e encantamento do futebol
para o campo do "politibol", onde não mais
assistiremos calados a jogatina que fazem dos
recursos públicos.

Avante, nação brasileira, de pouco mais
de 510 anos, mas cada vez mais consciente
de que há muita coisa a mudar por estas terras
para se ganhar o campeonato da vida - esta, sem sombra de dúvida, a conquista mais sonhada - .

Que a pátria de chuteiras,
se transforme em uma pátria de oportunidades,
de combate aos oportunistas e saqueadores,
nas práticas públicas e no próprio esporte que tanto amamos.


AjAraújo, o poeta humanista, crônica escrita em 4 de julho de 2010.
 
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AjAraujo
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