O AUTO DE SÃO LOURENÇO
(Na visão de um Tupiniquim)
Já se passaram duas idades de meu pai desde que eles aqui chegaram.
Com suas vestes estranhas, me lembram aves de minha terra, e com seus maus cheiros, mais parecem com nossas caças.
Desde pequeno acompanho um senhor que fala estranhamente minha língua, mas todos o respeitam entre nossa tribo e a tribo dele, principalmente quando nos fala sobre seu Deus.
Várias vezes, entre outros senhores de veste preta, o ouvi sendo chamado de Canário. Para nós da tribo é Padre José.
Eu sou um dos poucos Tupiniquins que fala seu idioma, por acompanhá-lo desde pequeno. Sempre ia seguindo-o carregando penas, tintas e outras coisas que não sabia para o que servia. Coisas que o mantinham desperto e debruçado por noites intermináveis.
Agora sou um jovem senhor Tupi, usando vestes que me ridicularizam entre meu povo, fazendo-me cada vez mais afastar-me de meus costumes e entender mais os da tribo deles. Sirvo a José, como ele gosta que eu o chame, mas ele não me deixa fazer nada além dos meus serviços ordinários.
Sempre temos longas conversas, onde ele fica me explicando coisas sobre Deus e seu Filho que morreu por mim. Isso me confunde um pouco, ainda mais quando ele fala sobre um certo Espírito Santo. Daí pronto, lá se vai tudo o que eu havia entendido. Com o passar do tempo notei que cada vez menos ele pergunta coisas da minha língua e eu cada vez mais pergunto sobre a dele.
Hoje é um dia especial para todos. José preparou um espetáculo para a tribo, onde explicará para meu povo que um guerreiro chamado São Lourenço lutou um dia pelos índios. Cabe a mim ajudá-lo na tradução para a minha língua materna. Digo a todos que a dança vai contar a história de um guerreiro da tribo dos maus cheirosos o faço todos rirem, menos os atores, que não entendem. Percebo até um leve sorriso em José. Dias antes, o padre me preparou para ajudá-lo, explicando-me sobre como se desenrolaria a trama.
O teatro está todo improvisado com fogueiras e madeiras postas de maneira estranha para nossos costumes, o que incomoda um pouco a José por dispersar a atenção dos índios.
Enfim, chega a hora do espetáculo. Noto que a noite esta mais clara do que de costume, não só pela quantidade excessiva de fogueira, o que deixa a tribo um pouco assustada, mas também pela lua cheia que dá ainda mais beleza ao céu. Será que José teria programado tudo isso? Bem, tomo minha posição ao seu lado para auxiliá-lo (o que quase nunca ocorre, pois ele sempre acha uma forma de expressar o que quer mesmo quando não sabe a palavra, fazendo gestos que são comuns à tribo). Vez ou outra, quando os atores param para mudar o ato, me perguntam sobre o nome de algum objeto ou Deus pagão da tribo.
Todos estão sentados ao chão. Vieram até índios de aldeias próximas, o que deixa todos excitados. Entre crianças brincando, velhos fumando e jovens curiosos, estou eu, perdido com tanta informação, mas contente por começar a entender aquela tribo e aquele senhor em especial.
No começo, os vejo dançando e cantando ao redor de uma mabaetatá com o dito guerreiro dentro do fogo, o que já causou furor entre os espectadores, fazendo com que o padre pare a cena e explique que o guerreiro havia morrido daquela maneira pelo amor a Deus, e que o fogo de seu amor era maior que o que lhe queimava. Isso acalma a todos e, mesmo sendo aquela cena aterradora para meu povo, fica claro para mim o significado.
Terminada a primeira parte do espetáculo, enquanto os mais velhos de minha tribo discutem, o povo vai desmontando a fogueira que queimara o guerreiro branco que José enfatizava sempre o nome: São Lourenço de Huesca. O padre explicara anteriormente a mim que a peça era dividida em partes, para sua melhor adaptação com o ambiente.
Refeito o cenário, todos estão mais tranqüilos e o padre um pouco mais calmo, inclusive no tom de voz. Nesta noite, enquanto ele fala sobre Guaixará, todos estão calados. Até o luar parece ter se amedrontado com a tal pronúncia.
Com a ajuda de alguns voluntários da nau que chegaram há pouco tempo, diz ele que Guaixará havia mandado seu amigo Aimbirê, para que poluísse a tribo com luxuria e bebedeiras, coisas que de pouco tempo atrás haviam ocorrido, o que alegrava os da tribo de José e deixava os da minha totalmente perdidos em relação aos costumes dos brancos. Mas Guaixará agora estava sendo impedido de atacar os Tupiniquins por estarmos perto de Cristo, o que não acontecia com outras tribos.
Depois de alguns minutos atentos às palavras de José, alguns jovens se desprendem da encenação, o que deixa o padre visivelmente irritado. Aproveitando as circunstâncias, ele diz que o motivo dessa dispersão é a Saravaia, enviada pelo seu mestre, Guaixará, para distrair a atenção dos índios. Isto que faz com que todos se calem e deixa todos assustados, inclusive eu. Diz ainda que, agora, com o caminho aberto, a Saravaia vai voltar correndo como um tupã e contar a Guaixará sobre a desordem. A inquietude volta a atormentar os mais velhos, pois por serem responsáveis por todos da aldeia, deveriam tomar alguma atitude para proteger-nos de tal mal.
Notando que havia sido duro demais em suas palavras, José encerra o assunto dizendo que a tribo pode ficar calma, pois o espírito de São Sebastião que já os protegera antes, junto com São Lourenço e o Anjo Guardião de Deus, já estava ali para impedir que os demônios atacassem, e que todos que lá estavam eram filhos de Cristo.
Depois de longas explicações que mais servem para confundir os espectadores, eu entendo que o ele quer demonstrar: que todos aqueles que seguirem o caminho com fé no Cristo serão salvos, e os maus acabarão como os demônios presos pelos Santos, condenados ao exílio. E o mais maldoso acabará como Guaixará, queimado em chamas para todo o sempre.
Novamente noto uma movimentação por detrás do padre enquanto ele bebe água de uma cabaça que sempre carrega. Antes que alguém boceje ou comece conversas paralelas, José começa a contar com voz forte que, um dia, o Anjo pediu a Aimbirê que castigasse Décio e Valeriano. Aimbirê chama Saravaia e manda que procure mais gente para ajudá-lo. Depois de ter castigado aqueles mal feitores, que eram chefes de suas tribos, ficam zombando com suas coroas, que José nos explica ser uma espécie de coca para os caciques brancos (isto faz com que algumas crianças comecem a brincar com as que usam neste momento). Tenho a impressão de que ele quer dizer que a responsabilidade da aceitação do Deus branco deve partir dos caciques das tribos e que todas os povos que forem Cristãs serão salvos de Guaixará.
Nesta parte da encenação está sendo mais fácil o entendimento, pois todos estão compenetrados devido aos bons exemplos que o velho Canário dá ao meu povo. O que mais me intriga é como podia aquela tribo das histórias de José fazer coisas tão brutais, coisas tão más, que são difíceis para eu, e principalmente meu povo, entender. Por outro lado, eu já começo a perceber o valor que eles davam por terem mais do que precisavam. Entre nós também não há a individualidade, pois tudo o que temos na tribo pertence a todos.
E com Décio e Valeriano queimados por serem pecadores e não terem aceitado Jesus Cristo como seu salvador, Anchieta termina mais uma parte deste auto. O fato de eu ter entendido os ensinamentos que ele quis passar a nós, já o deixa visivelmente contente com sua explicação.
Depois de dois longos goles d’água, tenho tempo hábil para adicionar lenha nas fogueiras e fazer um leve comentário sobre o impacto que tal encenação causara na tribo, deixando o padre mais disposto a fazer sua conclusão, que me diz chamar de quarto ato.
Ele coloca bastante força em suas palavras ao afirmar que se não temermos a Tupã, seremos castigados como Décio, e que se não respeitarmos a igreja, seremos lançados ao fogo eterno como Valeriano e Guaixará.
Todos que estão aqui, sem exceções, atiram-se de joelhos ao chão e começam repedidas vezes a fazer o sinal da cruz. Noto até que alguns brancos da tribo do Padre José fazem o mesmo, ainda que não entendam o que se passa no nosso idioma. José pega em meu braço, pede para que eu levante e que todos ali façam o mesmo. Ele nos explica que Deus nos dá o arrependimento e o amor, e como o Anjo guiou a alma de São Lourenço ao céu, o Cristianismo nos levará também. Fala que o amor de Deus está ali, e inclusive cita uma passagem da Bíblia:
“Levantai os olhos ao céu, meus irmãos. E vereis a Lourenço reinando com Deus. E depois da morte, verás na glória o rosto divino, com clara visão”.
Anchieta diz esses versos também no seu idioma, com um grande brilho no olhar. Depois, olha para o céu como em forma de agradecimento por estar fazendo o que faz de melhor (em minha pequena opinião): levar Cristo aos que não o têm no coração ou no conhecimento.
Todos elevam os olhares para as estrelas, que hoje brilham como nunca. A noite parece uma janela para outro mundo: o da tribo de José, mergulhada nos nossos costumes, e nossos costumes se entrelaçando aos deles...
Baquara, como eu ás vezes o chamava, disse para eu me apressar em trazer os doze meninos que apresentarão o jogral que preparou. Preciso ocupar o lugar de dois deles, por não terem decorado suas falas, o que me deixa muito feliz.
Em minha primeira fala tento demonstrar para José que posso entender e interpretar suas palavras. Digo:
“Nós confiamos em ti, Lourenço santificado, que tu nos guardes preservados dos inimigos. Aqui, dos vícios já desligados, nos pajés não crendo mais, sem nossas danças rituais e nem seus mágicos cuidados.”
Apesar disto me deixar imensamente satisfeito, noto que alguns dos mais velhos não estão. Acho que o novo nunca agrada mesmo os mais simples.
Minha segunda fala é arrebatadora, pois mesmo sendo um simples tupiniquim criado com costumes de europeus, sei que as frases finais são fortes até mesmo para os ordinários Tupis e Tupinambás ali presentes:
“Em tuas mãos depositamos nosso destino também. Em teu amor confiamos e uns aos outros nos amamos para todo o sempre.
Amém.”
(Autor: Anicelso Militão Junior)
VOCABULÁRIO
Baquara - esperto, sabido, vivo.
Mabaetatá - coisa que é fogo, fogueira em Tupi Guarani.
Guaixará – Rei dos demônios
Tupã - Raio, trovão ou Deus, em Tupi Guarani.
Décio e Valeriano - Imperadores Romanos responsáveis pela morte de São Sebastião e São Lourenço.
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O AUTO DE SÃO LOURENÇO
Na visão de um Tupiniquim
Trabalho apresentado para avaliação do rendimento escolar na disciplina Literatura Brasileira, do curso de Letras, da UNIESP Santo André, ministrada pela professora Joice Aparecida Souza.
Santo André
2010
EPÍGRAFE
Levantai os olhos ao céu, meus irmãos
Vereis a Lourenço reinando com Deus
Por vós implorando junto ao Rei
Que louvais seu nome aqui neste chão!
(Amor de Deus)
Organizadores:
Roberta Noronha
Priscila Câmara
Anicelso Militão Júnior
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