Aquele que tira proveito do azar é um sortudo. A bem dizer é um filho da mãe com probabilidades de um dia se tornar santo. Não sei de mim às sextas-feiras à noite. Há quem me veja a beijar o gargalo de uma garrafa de gim, outros apontam-me como uma miragem. O certo é que estou liso e os juros a cada dia ganham mais erecção. Neste país, quem dá um peido sem justa causa, apanha no mínimo dez anos de cadeia. Havia de haver um livro de reclamações quando o sistema nos toma. Somos um pouco tímidos a pensar na palavra liberdade. Os dias são contados com uma máquina de contar notas. A justiça tem miopia. O país tem o fígado lixado. O sonho é onde me ponho a jogar bilhar numa mesa sem buracos. Sou ateu às segundas-feiras e pedagogo às terças. Às quartas ponho-me à distância, às quintas é só para contar aos amigos, às sextas já falei e aos sábados… bem, aos sábados, é dia de ressuscitar.
*
Liguei para a Naida, filha de um bacalhoeiro que em tempos tive uma relação descomprometida, sem grandes quimeras, para que amanhã traga os fios e pulseiras de couro à qual tem uma habilidade única. Aliás, a Naida, onde põe as mãos, faz obra. Mas em tudo!
- Aparece amanhã no largo. Vai haver muito otário. Anda que eu ponho as bejecas.
Não a percebi muito contente pois apenas respondeu, hum hum. O que é de estranhar visto que a Naida, além de ser toda para a frentex, é despachada na língua. Aliás, que me lembra, em vários sentidos.
Apesar de tudo, na manhã seguinte lá apareceu, com a sensação que anda movida a remédios multicores mas lá apareceu, com a sua bijutaria feita na paciência do lar, a três pancadas mas de grande valor artístico, afim de, quiçá, ganharmos uns cobres e tirarmos a barriga de misérias com uns enlatados. Tentei animá-la contando umas piadas sobre padres mas nem assim.
A Naida estava num precipício à qual eu, pelos vistos, não podia dar a mão. Só à custa de dez cigarros, 40 minutos depois, após montada a banquinha com os artefactos de pulseiras, brincos, piercings, colares, é que falou:
- O meu velho, pá, apetecia-me matar o meu velho!
Depois foi um desfile de palavrões e de sentimentos altos. Da sua voz, além de raiva, salivava bastante. Por isso dá para entender o tamanho da desconsolação.
Pelo que entendi, o velho andava-lhe a foder a vida, a obrigá-la a vender-se por vinte paus para matar a sede de vinho. Punha-a numa recta de uma estrada secundária até que chegassem clientes, e depois o dinheiro, era, bota para cá!
- Naida, deixa, que se apanho esse cabrão dou-lhe uma puta de uma coça que ele nem vai saber de que terra é!
A Naida lá fez um sorriso pela minha participação no seu descontentamento. Inclusive, disse-me que eu era um gajo porreiro. Que ainda havíamos de ser felizes lado a lado. Por obra da nossa cumplicidade, nesse dia o negócio corria cinco estrelas, os nossos ânimos aqueciam quer com olhares quer com um pouco de vinho de porto. O sol só a nós pertencia. É bom viver ao pé de mar e fazer-lhe cócegas na areia, pensava eu na minha. Ter um destino de fundo azul com umas nuances esbranquiçadas.
Sentado, à velho cigano, observava a Naida, e imaginava-nos aos dois com uma porrada de filhos, a puxar-nos para o pátio, para o baloiço que prometi mas que não me lembrava. Ah, o sonho de haver sonhos. A música do Bob Marley a fazer dançar o milho. E a Naida, enquanto entrelaçava três tiras de couro para fazer uma pulseira, sem nada saber destes pensamentos, a sorrir para mim. Como a dizer sim.
Nesse dia fizemos uma pipa de massa. Ela estava inspirada e de vez em quando soltava uns pregões que, embora fossem meios alucinados, faziam o mesmo efeito de chamariz. Só um inglês levou duas pulseiras e cinco anéis góticos e pagou com uma nota tão grande que me senti pequeno. Acarinhei a nota. Pois era a primeira vez que uma daquelas me passara pelas mãos. Estou mais habituado a chapas.
A cena do velho dela não me saía da cabeça. A minha vontade era de, enfim. Apenas espero que o destino lhe faça estourar os tomates e os miolos. A ele e a gente como ele.
Mas o dia não acabou assim. Deus não sabe fazer contas de cabeça.
Na hora em que arrumávamos as trouxas, o velho dela, como um cacho, a pedir explicações à filha do porquê não estar em casa a fazer a janta, e ainda por cima a insultá-la de cima a baixo.
O tempo parou e, numa fé resvalada, a Naida bateu o pé, respondendo-lhe com a mesma moeda, filho da puta, ordinário, chulo, vai-te embora, pá! O velho estava convencido que o mundo apenas a ele pertencia, e avançou para tentar algo, numa de puxar os colarinhos à paternidade. Aí, xau, como se diz lá na minha terra, foi como quem me acorda com um balde de água fria. Entrei em cena e, num soco só, estendi-o no chão feito cão a esguichar sangue pelo focinho. Bastou um soco bem dado para o velho ficar enroscado em si mesmo e a dizer mal da sua vida.
A Naida aproveitou e cuspiu-lhe em cima com uma vontade que só vista.
Pessoas vinham-se aproximando e foi uma confusão dos diabos. Parecia que a maré ia subir em segundos.
Não sei quantos minutos depois, do nada, apareceram dois bófias à paisana que, sem mas nem meio mas, puseram-me as mãos atrás das costas, algemaram-nas e, com uma fusca apontada à minha cabeça, disseram, anda que destas já não te livras.
Sei que virei-me para a Naida aos gritos:
- Faz qualquer coisa, Naida, diz o que esse velho te anda a fazer, diz, Naida!
Mas a Naida estava em choque, a chorar acriançadamente. Seguramente a ganhar coragem para intervir e apontar o dedo ao real bandalho que, na sua manha de velho sabido, chamava-me de comunista, cão, merdento, para se fazer de vítima e sensibilizar os de fora.
Os bófias corpulentos não tiveram fé em porra nenhuma e, à força da força, tentavam enfiar-me para dentro do carro patrulha a todo o custo. Desse por onde desse. E eu a dar luta.
Nesse instante o sol queimava-me as vistas, os sons da multidão que assistia ao aparato estavam dentro da minha cabeça em ecos contínuos, mas a distanciarem-se.
Eu continuava a pontapear o ar, a espumar ligeiramente para a camisola, de costelas magoadas, anestesiado na alma mas ainda assim sentindo que alguém me tocou de leve no cabelo, com um carinho inexplicável. Era a Naida. Sorri. Pois só ela me podia safar e contar tudo à polícia sobre quem é afinal o mau da fita, antes que o caso virasse para tribunal, já que, é sabido que por lá andam uns magistrados mortinhos por dar cabo dos inocentes, com vontade de enrabá-los a sangue frio, para que estes tomem o lugar dos filhinhos do papá que andam para aí a cheirar.
O carro da polícia estava pronto para arrancar, eu sentado no banco de trás, curvado para a frente, respirando forte e com um fio de saliva a sair do canto da boca a denunciar cansaço, quando, a Naida, pálida como tudo, aproximou-se da porta que tinha o vidro meio aberto e, em palavras a perderem a vida, disse-me assim:
- É meu pai, Silver, entende, é meu pai…é meu pai…