[ao borges]
não tirem o vento às gaivotas - sampaio rego sou eu
comecei a chorar. não que me apetecesse. mas tinha acabado de comprar estas lágrimas na feira da ladra – o homem de fato treino que mas vendeu. tinha umas sapatilhas nike que já tinham pertencido a um humano que corria os cem metros em menos de dez segundos – caiam-lhe do corpo franzino umas mãos enormes. quase mortas. uma barba espessa. e uns olhos cavados num muro de granito preto – confiei nele. não estava de fato e gravata. nem tinha uma pasta de pele confeccionada por um qualquer estilista francês. tinha um banco de praia enferrujado e um cobertor diferente de todos os que eu conhecia: roto. sujo. e cheio de quadrados irregulares. talvez triângulos isósceles. com ângulos que apenas ele os conhecia – perguntei-lhe onde tinha colhido estas lágrimas tão transparentes. não me quis adiantar muito. o segredo era a alma do negócio. tinha um vício para alimentar que não lhe dava descanso. acordava-o todas as manhãs com as dores de uma jornada incerta. feita de uma correria contra um tempo que dói – essa dor. de joelhos. silenciosa. segreda-lhe [todos os dias ao levantar] que agora falta menos um dia para o dia do juízo final – mas o sol afinal está onde sempre esteve. ali. onde um dia o pai o levou pela mão a ver o ferro velho que a vida produz. se calhar foi nesse dia de ternura que o corpo se tornou frágil para sempre. quem sabe. se uma daquelas criaturas que naquele domingo vendia a alma ao diabo. visse nele o amor que sempre procurou – apoderando-se do seu corpo. e fazendo dele a sua morada de vida – embrenhou-se para sempre nas suas veias que. com o tempo. se desfizeram na procura do alivio divino – olhávamo-nos. eu imaginava a sua vida e ele imaginava a vida que podia ter tido – queríamos falar. mas a roupa dizia que pertencíamos a mundos diferentes. havia um tempo espesso no nosso meio que não nos deixava comunicar – ligou um gira-discos de uma época onde os brinquedos eram de chapa. tinha uma agulha de aço. e uma orelha enorme por cima de um corpo de madeira trabalhada. foi aí que percebi o porquê daquele homem ter dentro de si todas as dores do mundo – este ouvido gigantesco. tinha uma caixa capaz de abrigar todos as injustiças que por ali passavam – começou a dar à manivela como se carregasse a caixa de uma vida que já há muito já não era sua. lentamente. a música soou. soou para si. e para mim. para nós – começou então a gotejar umas pequenas lágrimas. iguais às minhas. ainda mais transparentes – ficamos por ali a conversar. falamos da vida que ainda faltava viver. falamos da sua manta de restos do mundo que tinha ali para vender – em cima de um tabuleiro de casquinha de prata. havia uns cristais italianos de murano. perguntei-lhe onde os tinha conseguido. disse-me que tinha sido uma herança. um amigo visconde que tinha acabado morto dentro de uma urna de pinho. deixou-lhe também uma colher e um limão. que ainda hoje guarda dentro da caixa de música – era escritor. teimava em escrever o que ninguém lhe lia. nas noites em que abraçavam o mesmo destino sempre lhe dizia com um sorriso que apenas a dor conhecia: um dia nasceremos novamente. num outro mundo. mais bonito. sem dor. sem ostracismo. sem indiferença e sem ferro velho.