Há na memória um rio onde navegam
Os barcos da infância, em arcadas
De ramos inquietos que despregam
Sobre as águas as folhas recurvadas.
Há um bater de remos compassado
No silêncio da lisa madrugada,
Ondas brancas se afastam para o lado
Com o rumor da seda amarrotada.
Há um nascer do sol no sítio exato,
À hora que mais conta duma vida,
Um acordar dos olhos e do tacto,
Um ansiar de sede inextinguida.
Há um retrato de água e de quebranto
Que do fundo rompeu desta memória,
E tudo quanto é rio abre no canto
Que conta do retrato a velha história.
* José Saramago, escritor e poeta luso, voz de alcance universal, Prêmio Nobel da Paz, em 1998, uma figura eternizada pela obra, postura e coragem para colocar a mão na ferida diante da lança que corta e torna o mundo tão desigual.
Imagem: Rio Nilo, Egito.