A vida? Sei lá que caralho é a vida! Talvez a soma disto e daquilo, pedaços, pedacinhos, pedações que, com cuspo ou sabedoria, vamos colando, feitos cientistas malucos que passam uma vida enfiados em caves mal cheirosas à procura de tantas soluções que só arranjam é problemas.
Mantenho-me aqui nesta terra de ninguém cujo nome dá-me duas voltas à língua, nesta vila sossegada onde as flores mal se levantam da terra morrem logo de descontentamento.
Um rio tão porco que nem me atrevo a demolhar lá os tomates para não apanhar uma tomatite entre as pernas. Faz um ano que a minha vida mudou para uma situação clinicamente desastrosa. Coincide com o facto de ter metido na cabeça que as mulheres são todas iguais. Tens cacau, estás safo, não tens cacau, ora vai-te lá lixar, ó meu.
Tentei refúgio numa caverna mas tenho medo de pássaros bicudos. Por outro lado também tenho muito medo de homens que metem o nariz onde não são chamados. Infelizmente a solidão não tem traseiro, senão, dava-lhe um pontapé no traseiro.
Pelo que sei, a Irene, desde que lhe saiu a lotaria, investiu em lacas, cremes de gordura de caracol, champanhe francês, lavagantes, ilhas Maldivas e não hesitou em dar asas à imaginação e meteu um preto lá em casa, onde oito meses depois, mostrou-lhe quem era quem. Comeu-lhe o corpo e o dinheiro.
Agora está raquítica de ossos e alegria, e já me sondou que quer se encontrar comigo para desabafar umas merdas.
Eu tenho as minhas e não sei se estou para levar mais no pêlo.
Demorei muito a conquistar o sossego. Tenho relações esporádicas e não tenho cá que andar a investir em restaurantes. Com a miséria que o estado me dá, a minha sorte é pequena mas dá para os trinta dias do mês.
Uma colherzinha de cada vez faz um futuro, assim creio. Um dia bateu-me à porta, a Irene, toda chupada, olhos metidos num buraco, cabelos que não são cabelos, uma coisa qualquer a cobrir-lhe a pele da cabeça, a convidar-me para ir a um cinema, mas eu já estava a ver o filme: convencer-me a ficar cá em casa, nesta espelunca onde os ratos têm por hábito visitar-me nas alturas mais impróprias. Mas antes de a mandar de volta ao sítio de onde veio, não quis que ela pensasse que eu, poeta de grandes talentos, não tinha pila.
Levei-a para o quarto e fizemos amor até doer. Ouvia-lhe os ossos cantar. No final apontei-lhe com o dedo para a cozinha e, por detrás dos fios da cortina, uma montanha de pratos e garfos e restos de comida e bagunçada e sei lá mais o quê. Lá nisso a Irene foi forte e meteu mãos à obra. Depois sim, passada uma hora, a cozinha parecia agora ser de gente.
Fomos à varanda fumar um cigarro. A cidade parece estar a ser comida por uma mosca gigante, tal é o zumbido ensurdecedor dos carros e do movimento frenético das pessoas.
Mas no fundo, depois de uma boa queca, a vida é bela. Os pássaros parecem pequenos homens acrobatas, e o cheiro do rio passa a ser um desodorizante de uma boutique de paris.
A tristeza apega-se e, a Irene, mexeu comigo. Aquele olhar de quem vem de longe, cansado, e perdeu as chaves de casa.
A sua palidez a ganhar cor, convenceram-me a que ela por cá ficasse a dormir por uns tempos. O tempo de o destino se endireitar com a força da coragem, de um grito.
Mais uma passa no cigarro e por momentos o coração se ilumina. Continuamos a olhar a cidade, a saber que a vida é apenas dias e mais dias e mais dias e mais dias.
Cansa saber disto.
O tráfego, o tráfico,
o comércio, os mendigos, o cheiro a maldição, as interrogações. As putas das interrogações.
Os caminhos que não nos levam a lado nenhum. A Irene olhando-me, a roubar-me pensamentos, a saber o quão importante é ter sabão para lavar a roupa e nem sequer haver nem uma coisa nem outra.
Saiu para a rua. E por lá andou. Chegou tarde. Trouxe um sorriso em cada mão. Uma nota de cem em cada uma. Eu estava ocupado em não fazer nada. A televisão a fazer-me companhia e a tentar-me convencer que o futuro faz-se com dois tijolos. Não sei como a Irene arranjou o dinheiro. Não sei, não quero saber, e tenho raiva de quem saiba.
Apenas sei que todas as noites ela chegava com uma nota de cem em cada mão. Deitava-se no meu colo e contava-me a história de uma menina que sonhava ser feliz. A felicidade tem os seus altos e baixos. Não vale a pena comprar um carro se pensarmos que vamos ter um acidente no primeiro dia.
O mundo vai acabar mas isso não é razão para antecipar a morte. Os meus poemas falam por mim. Só tenho ódio contra o ódio.
A Irene está trabalhando bem. Diz que o faz por amor.
Quero-a despachar mas, há os cem euros em cada mão, há a voz dela por toda a casa.
Há tudo isto a ganhar crosta em mim.
A vida?, sei lá que caralho é a vida.