O quadro clínico do Velha agravara-se e não havia ninguém referenciado como familiar ou amigo a quem o hospital pudesse comunicar a situação. A última pessoa com quem ele tinha vivido falecera dois dias antes dele se despedir da Serra Alta e de, ao chegar a Pérolas Falsas, chorar de inconsolável tristeza. E já tinha passado perto de um ano.
Era a tia-avó Anja, abandonada à solidão, numa aldeia de mais de cem casebres vazios, de portas e janelas escancaradas, cada vez menos visitados pelos fantasmas da memória enferma ao ponto de a ensurdecer e cegar a maior parte do tempo, desde que se levantava até que adormecia.
Com o seu rebanho de transístores, o Velha distraía-se de a ver, àquela que o criara de pequeno, que não conheceu pai nem mãe, nem lhe disseram alguma vez se eram vivos.
Com os anos, ele cresceu e a tia, envelhecendo, deixou, pouco a pouco, de o reconhecer. O Velha não saberia dizer a idade com que ela, arrastando o pesado corpo, no inverno, se deslocava para onde houvesse sol e, no verão, para onde a água fresca cantasse na fonte.
E não sendo capaz de, por si só, regressar a casa era ele quem, incerto de ser ouvido, a guiava, falando todo o tempo do doloroso e lento percurso sobre calhaus rolados, certamente pré-históricos, até aos cinco tormentos que era subirem cinco degraus de granito da escada desmantelada da entrada. A tia-avó, sem poder comentar, gemia e chorava, amparada ao sobrinho-neto e ao cajado cujas marcas da passagem do tempo haviam sido já por este apagadas. Quando, finalmente, chegavam à cozinha ela esperava que ele pusesse na mesa algum alimento para debicarem.
Também foram assim os derradeiros momentos da vida dessa mulher de quem não se sabe se chegou a pensar que o mundo existia para lá da Serra Alta.