Crónicas : 

Numa noite destas...

 

Saí encoberto pela noite, virei a gola ao frio, esfreguei as mãos uma na outra na tentativa de as aquecer:
- O Sr. tem um cigarro? – Ouvi num arrastar de pronúncia imperceptível numa voz roufenha e olhei para o lado. Vestia umas calças andrajosas com um atilho a fazer de cinto que atamancava de igual forma a camisola de lã grossa por dentro das calças. A gola da camisola tinha-se alargado formando um decote onde espreitava uma camisola fina que devia ter sido branca. Contrariado por me obrigar a desapertar o casaco para chegar aos cigarros resmunguei um “sim” e lá dei com o maço, aproveitei e tirei 2 cigarros, um para mim e outro para ele
- Que diabo, um cigarro não se nega a ninguém… – disse para comigo desculpando-me pelo meu incomodo inicial. Entreguei-lhe o cigarro, e estendi-lhe o isqueiro para ele o poder acender. Deu uma trava longa que lhe atingiu os pulmões como um soco, fazendo-o tossir, uma tosse seca que lhe vinha lá de dentro e ecoava na indiferença da noite invernosa. Passou-me o isqueiro, acendi o meu cigarro e dispunha-me a encetar caminho:
- O Sr. por acaso não tem aí uma moedinha? – Atirou-me assim de chofre mais numa suplica que numa pergunta. Mirei o cabelo que lhe caía oleoso sobre os ombros, como hera no Outono, emoldurando um olhar de sol posto, triste e invernoso como a noite que já me começava a enfurecer tal a cadencia com que começava a bater os pés para contrariar o frio.
- E para que queres a moeda? Para juntares a outras até dar para um caldo? Não dou dinheiro para droga, pá. – Retorqui do alto da minha sabedoria, acolitada pela vasta experiencia que julgo ter.
- Não Senhor, era para comer qualquer coisita, ainda num botei nada ao bucho hoje. – Mexia com as mãos quando falava, umas mãos secas onde distinguia os ossos que lhe rompiam a pele e as veias maceradas ao nível do pulso, num rio triste e escuro que adivinhava lhe desaguava algures pelo cotovelo. Meti a mão ao bolso procurei algumas moedas e entreguei-lhe.
- Obrigado meu senhor, quando precisar estou sempre por aqui – prometeu em jeito de agradecimento virando-me costas e desaparecendo na noite parda, na escuridão que só ele conhecia, para lá do meu entendimento, para lá da razão. Vejo-o todos os dias em cada esquina.
- Que diabo, umas moedas não se negam a ninguém…
 
Autor
jaber
Autor
 
Texto
Data
Leituras
1211
Favoritos
0
Licença
Esta obra está protegida pela licença Creative Commons
13 pontos
13
0
0
Os comentários são de propriedade de seus respectivos autores. Não somos responsáveis pelo seu conteúdo.

Enviado por Tópico
Nanda
Publicado: 07/06/2010 21:08  Atualizado: 07/06/2010 21:08
Membro de honra
Usuário desde: 14/08/2007
Localidade: Setúbal
Mensagens: 11099
 Re: Numa noite destas...
Jaber,
Gostei da forma como descreves uma situação trivial especialmente do desfecho humanizado.
Beijo
Nanda


Enviado por Tópico
Carolina
Publicado: 07/06/2010 21:16  Atualizado: 07/06/2010 21:16
Membro de honra
Usuário desde: 04/07/2007
Localidade: Porto
Mensagens: 3422
 Re: Numa noite destas...
É bom sabermos que existe sempre
alguma coisa que podemos fazer
pelos outros.
Gostei de ler.

um beijo


Enviado por Tópico
arfemo
Publicado: 07/06/2010 21:46  Atualizado: 07/06/2010 21:47
Colaborador
Usuário desde: 19/04/2009
Localidade:
Mensagens: 4812
 Re: Numa noite destas...
poderia ser mais um texto...mas não, é verdadeiramente um mini-conto, rico na ajectivação (que não excessiva) e na fluidez da narrativa..

abraço, Jaber


Enviado por Tópico
visitante
Publicado: 07/06/2010 22:03  Atualizado: 07/06/2010 22:03
 Re: Numa noite destas...
Sem dúvida, este é o registo em que mais gosto de te ler.
abraço
nuno


Enviado por Tópico
visitante
Publicado: 07/06/2010 22:18  Atualizado: 07/06/2010 22:18
 Re: Numa noite destas...
Gostei desta tua crónica(no geral gosto imenso de seguir o que escreves)

Gostei da mensagem que envias-te atravéz destas tuas palavras, que tiveram para mim um contexto de mensagem, uma reflexão, num mundo cada vez menos humanizado, onde uns têm tudo e outros sem nada. Nada mesmo, no sentido mais lato da palavra, NADA.
A miséria esconde-se nas ruas, bem pertinho dos nossos narizes, e muitas vezes as pessoas preferem ignorar, (afinal só vemos o que queremos).

Beijo

Luisa Demétrio Raposo


Enviado por Tópico
visitante
Publicado: 07/06/2010 22:51  Atualizado: 07/06/2010 22:51
 Re: Numa noite destas...
Grande jaber, gosto destes teus, como diz o arfemo, mini contos, que bem poderias transformar em big-contos pois talento não te falta.

Não, não estou a engraxar mas sempre podes fazer a tal pescada com natas!!


Grande abraço


Enviado por Tópico
sampaiorego
Publicado: 08/06/2010 00:51  Atualizado: 08/06/2010 00:51
Membro de honra
Usuário desde: 31/03/2010
Localidade: algures virado para o mar com gaivotas
Mensagens: 1147
 Re: Numa noite destas...
gosto de ler prosa. também é por aqui que gosto de passear com as palavras - o texto está excelente. como sempre.

abraço jaber

sampaio(r)ego