"...olhavas-me de baixo e eu sentia-me como presa naquele quadro dependurado naquela parede nua... havias-me pintado, traço a traço, ruga a ruga com aquele lápis de cera preta com que fazias os teus gatafunhos... olhavas-me de baixo e eu sentia-me perdida no meio do teu olhar que não sabia ler, que não sabia entender... havias-me traçado a pele enrugada à volta dos olhos, nas faces, as próprias linhas do franzir habitual da minha testa... como me houveras pintado tão bem... ainda recordo aquela manhã em que sentada no banco da cozinha me havias pedido para posar para ti... ri-me como se pudesses fazer tal coisa... e, depois destes anos todos passados, em que regresso apenas em memória, olho-te de cima e vejo-te a olhar para mim daí de baixo, em pé nesse chão de tábuas rabugentas e bafiosas... olhas-me com um olhar parado, sem fulgor, apagado, mas olhas-me e recordas-me... só não consigo entender se me olhas por respeito se por amor... e a dúvida mantém-me presa dentro desta moldura..."
Joaquim Nogueira