Corria, vertiginosamente, pela mata negra. Aos tombos e aos arremessos. Galhos afiados rasgavam-lhe a carne como dedos vivos. Os gritos vinham de todos os lados. Os cães. Não, os cães, não... Foi até aquele ponto em que deixou de ouvir. A queda. O eco do seu nome gritado por muitas vozes misturou-se, ainda por muito tempo, com o ladrar dos animais. Até que pararam de todo e a noite seguiu o seu curso na mata escura povoada pelos sons habituais.
O torpor. A tontura da inconsciência a dissipar-se para dar lugar a um pensamento. Não sabia se estava vivo. Nem se estava morto. Estranhou acordar e sentir o metal frio do chão. Estranhou o zumbido do ventilador. Estranhou uma rapariga de longos cabelos loiros agachada a um canto. Estranhou o olhar de medo com que ela que o olhava.
E sorriu. Pensou que estava no céu e que ela era o anjo com que sonhava desde pequeno...Tinha vindo para ele. Para o vir buscar. As lágrimas cairam-lhe, mornas e traçaram sulcos na cara suja de sangue e lama. Com um dedo espetado, ela foi até ele e durante muito tempo, moldou esses pequenos sulcos uns nos outros, tecendo desenhos, letras e coisas, e o terror nos seus olhos apagou-se, por fim. Ele nunca se mexeu. Teve receio que ela desaparecesse no ar. Tinha lido num livro do pai que os anjos podiam fazer isso. Só os podíamos ver às vezes, quando eles queriam e nos recompensavam por nos portamos muito bem. Ele ia portar-se muito bem para que ela ficasse ali com ele. Os dedos dela eram suaves. As mãos do pai eram fortes, rudes e más, sempre que lhe tocavam, até mesmo quando não lhe batiam. Magoavam-no sempre. O cinto. As carícias. O cinto, outra vez. Todos os dias . Tinha sido sempre assim. As mãos dela eram diferentes, tão pequenas... Não se atreveu a tocar-lhe, por muito que o quisesse fazer. Ela é que lhe tocou, primeiro com medo depois com ardor. Os seus corpos aninharam-se, enlaçaram-se as mãos até não haver espaços vazios, nem os dedos de um não paravam de sentir o outro, com medo que aquilo desaparecesse ou que parasse. Riram. Riram muito. Riam alto. Gritavam sons que não eram palavras. E assim ficaram até à chegada da morte. Ainda estavam abraçados e dormiam, cansados, a sorrir. Eram o anjo um do outro.
Incipit...