Qual é o preço a pagar por minha mediocridade ?
Se o esquecimento for, terei no lugar de “débito” um verdadeiro “crédito”, pagando ao túmulo uma “dívida” que por artifícios de fatalidade necrocósmica será convertida em “prêmio”, aconteça o que acontecer num tal futuro próximo que imagino para minha alma perdida.
Se o esquecimento for o preço a pagar, assevero a todos vocês que de esquecimento em esquecimento tenho juntado uma grande soma a ser resgatada de uma conta-fantasma nos investimentos do banco do sono.
Dormir é o que resta a um poeta desiludido, amaldiçoado e desterrado como aquele que fui. Dormir é o meu prêmio. O sono eterno talvez seja, e o é, aquele em que já vivo antes de morrer, porque meus sonhos, malícias e aspirações cadaverizaram-se ao longo de um tempo dilatado no espaço de minhas paixões mesquinhas, meu ciúme é uma bandeja de carne em franca verminose e sem pudor, o sono eterno varrendo a praia onde não há absolutamente ninguém com as ondas de um desespero que já se acalmou desde o fim de minhas aspirações.
Mas desejar é sempre ser mesquinho? Será que não posso sonhar com o que não fui? Será que não posso querer ser aquilo que não quero ser? E por isso mesmo fico satisfeito, contrito e contrafeito por saber-me livre dessa merda da importância que eu sempre quis, porque cumpri o papel de ser humano, demasiado humano, e fingi, verdadeiramente fingi, plasticamente “fingi” todas as paixões de grandeza para melhor magoar o meu orgulho, cujos golpes desferi contra mim mesmo num bom lance de porradas edificantes, enaltecedoras daquilo que no espírito não passa de tontura animal.
Estou cheio de toda essa máfia psicológica que nos dita a modernidade com suas imagens espúrias, com seus ídolos bundudos, com suas realizações supérfluas e anti-econômicas e anti-ecológicas e anti-verdadeiras.
Eu gostaria de poder correr na avenida sem ninguém para me olhar, eu gostaria de ficar numa festa cheia de gente que eu realmente conhecesse, tendo uma eternidade para com todos conversar, eu gostaria que os meus principais amigos arrebentassem o meu túmulo, esse túmulo que sou e que anda por aí, andando com pernas de homem e com asas de mito e com rodas de egomóvel...
Que verdadeiramente me arrebentassem sem dar a mínima para o que penso e menos ainda para o que escrevo, porque o importante é falar; ler é uma prática secundária e escrever, por si só, não é nada... Mas que pudessem, contudo, ver-me verdadeiramente naquilo que sou, um espelho borgiano, um labirinto de emoções com rostos que mudam e que revelam cada um de meus amigos, muitas vezes transfigurados em monstros engraçadíssimos, ou em herdeiros de grandes gênios do passado, porém sem pose nenhuma, rostos infotografáveis, imagens que não captei numa câmera, mas que vivem no meu espelho – Beso, Dirlen, Fardin, Recabarren, Teotônia, Petrus, e tantos outros! – e que pudessem ver também, com o máximo de embriaguez, numa espécie de transe do daime, esse túmulo que sou e as noitadas tristes e o excesso de cigarro no cinzeiro, onde vivo como num subterrâneo, cheio de cinzas por cima, morto e enterrado nas cinzas dos milhares de cigarros que fumo desarvoradamente, desembestadamente, sofregamente, com a sofreguidão dos que sabem que viveram uma vida excepcional, porém “anônima” e por isso mesmo “premiada” com um “esquecimento” digno de Juízo Final – não qualquer Juízo Final, mas este, o Finalissimum, julgamento terrível que levasse todas as almas para o Céu para, inaugurando uma surpresa neo-radical, derrubá-las todas no fogo do inferno, despejadas de volta nessa metonímia safada de um calor sem nome – e é surpreso que me vejo, à guisa de autossocos, partido ao meio, automagoado e linchado pelo meu próprio ego, tendo de fugir para o exílio de um esquecimento doce, romântico, apaixonado, mas não apaixonado por realizações, meu caro, mas, por um outro lado, apaixonado pela beleza de mulheres que aparecem a cada sete meses para provocar oito emoções cabalisticamente diferentes, das quais cito três : o tesão, a perda e o respeito, o absoluto respeito de quem agradece a quem amou e não amaldiçoa a jornada que o espírito humano terá de ter nas trilhas dessa solidão promíscua da troca de parceiros, da vida a três, da vida subalternizada por uma diferença internacional ou intelectual, da vida neomatemática da soma que diz que um mais um é igual a zero; portanto, vocês, que me ouvem, ou que me viram por aí, bêbado e sozinho no Saloon a balançar a cabeça, sozinho no balcão de um bar da capital, a ver travestis e biscatinhas da periferia ricocheteando no espaço nu de um bar azul, ou então sozinho na cadeira na varanda, como um velho idoso a contemplar a desgraça das cores de um arrebol enraivecido... Vocês arrebentam minha sepultura – a que sou e que é só pele e músculos perdidos, órgãos entupidos e um saco de porra a desejar a mais avantajada das piranhas, ou a mais tatuada das mocréias – para carregar para longe de tal sepultura epitélio-histológica um esqueleto caricatural ou cadáver simpático que sentará na mesa do bar mais próximo para tomar cerveja e papear e “esquecer”, principalmente “esquecer”! – conversando com o Pedro Guerra sobre a “geração beat”, sobre filosofia chinesa, sobre a putaria da profissão de professor (que vem atender a contragosto os desejos das massas, ou que vem queimar o tempo na fogueira das inutilidades) e aí estou novamente, como no eterno retorno de uma voz embargada, diante de uma entrevista, massacrado pela minha mediocridade que não sabe responder a nada nem se defender, nem se justificar nem “aprender”, pronto para mais um gole ou golpe de qualquer álcool, na ilusão de purificar minha alma suja – como se precisasse de esterilizante aquele que vive já em plena esterilidade – ah, merda de alma suja, imunda, promíscua e imiscuída ! – pela qual Deus, aquele ídolo agostiniano que a todo momento anda a fugir de paparazzis de diferentes épocas históricas, se apaixonou.
Úmero Card'Osso
Úmero Card'Osso