As faces de Ulda ainda apresentavam uma suavidade irretocável. Os olhos premidos sob as grossas sobrancelhas mostravam uma beleza incandescente que ainda não sumira de todo. Ulda estava dormindo. Não havia qualquer sinalização de morte naquele corpinho, não fosse o estado de letargia, a rigidez do corpo e semblante já apontando aquela palidez mórbida, dos defuntos!
Ao choro convulsivo, sobreveio o inchaço na mãozinha miúda; em seguida o inevitável sangramento e o surgimento da diarréia. A laceração era algo discreto, aparentando um pequeno exagero, em função das proporções do membro transformado. Num intervalo de poucos minutos, pode se perceber que a evolução do caso conduzia para o incerto. O inchaço crescente do punho, pouco acima da pequena mãozinha, levava todos à perplexidade, ante a insuficiência de respostas aos meios utilizados para dar vazão à necessidade de um socorro. Numa última jogada, a mulinha pedrês tomou caminho da virada, levando mensageiro encarregado de trazer os recursos da mística popular. Os santos óleos falharam!
Zé Nastácio chegou e com dificuldades apeou do arreio. Calcanhar com inchaço aparente, era protegido por uma suja faixa de pano embebida em uma mistura escurecida que se veio a saber depois tratar-se de ungüento caseiro feito de azeite de semente de mamona e fumo. O cheiro era forte e ele caminhava com dificuldades.
- Mijacão, sô Lucas. Tive a sina de pisá em mijo de égua prenhe. Inchô tudo!
- Já foi na farmácia? – perguntou o velho.
- Nada, nada. To usano de ungüento de casa mermo. Num demora, vai a fura.
Interessante notar a disposição de Nastácio e do próprio Lucas, em desconsiderar num caso desses, a importância da mística da benzeção.
- Que que tá haveno por aqui, meu senhor?
- Cobra, Zé Nastácio. A excomungada da pico-de-jaca levou a pequenina Ulda. A infeliz já não respira mais. Três pra quatro anos. Viço de vida que se abria para o mundo!
O benzedor entrou na casa e percorreu todos os cômodos, como se buscasse uma ponta de esperança capaz de fazer levantar aquela vidinha. Tocou a testa da finada e sentiu a têmpora gelada dos mortos. Nada mais se podia fazer. Cerrou os olhos e murmurou prece de recomendação, sob os olhares entristecidos dos presentes.
O descuido da inocência foi vital para o trágico.
A luchesis muta, com rabo de ponta lisa e escamas arrepiadas, estava lá disfarçada na moita do capim-colchão-pelado. Um filhote. Dois metros apenas e uma violência dessas. Geralmente a espécie chega aos 4,50 metros de comprimento; bote de até 1/3 de seu tamanho. Escondidinha na moita de capim, a pico-de-jaca, a maldita surucutinga, o surucucu-de-fogo, foi certeiro; em infalível investida deixou impregnada na mãozinha da inocente a fenda demarcatória de suas presas insaciáveis. Pequeno arranhão! Numa pulsação de orgasmo, descarregou ali todo o volume de peçonha saída de suas entranhas, numa dosagem suficiente para derrubar um cavalo.
O gritinho saiu desabrido, num soluçar indômito, cacarejo de quem não percebe o fim.
Tudo quanto se tentou, pra estancar a proliferação do veneno restou inútil. Algumas poucas horas depois, bem antes da chegada de Zé Nastácio, a pequena se esvaiu no suspiro derradeiro. Estava consumado.
A fama do benzedor corria pelos quatro cantos da região. Não se sabia de sua origem ou se realmente sua mandinga funcionava, mas ele era enfático quando consultado:
- Minha mãe era benzedeira, maisi tamém ela fazia simpatia. Eu tinha desde muitos anos o dom, mas eu só assumi e passe a benzê depois que meu pai doeceu. Benzo de quebranto, de vento virado, de dor de dente, de cobrero, de cortá o medo. Aí ai de juntá o meu pidido com o merecimento da pessoa e a fé tomem, que sem fé, num isisti arremedo que cesse. Peço a Deus pra mandá os espírito de luz, o guia doutrinadô, e tomém, a Nossa Senhora pra protegê com seu manto sagrado.
A morte chegou primeiro que Nastácio. Restava agora, limpar o eito.
A presença da pico-de-jaca ali era uma realidade mais que comprovada, porém não consentida. Não era raro a morte de criação levada pelo ofendido de sua picada mortal. O desejo e a necessidade de se ver livre delas, aliado ao medo, fizeram de Luquinha, o metodista, um crédulo das diatribes sobrenaturais de Zé Nastácio.
O benzedor começou a percorreu os quadrantes da propriedade em sinalizações de penitência:
"Água benta na Igreja.
Jesus Cristo no altar;
Cobra abaixa a cabeça ó
que eu quero passar."
Segundo ele, o seu trabalho não afastava as cobras, tornava-as inofensivas.
“Benzo animal e benzo gente. Eu gosto dimais do povo, das árvore, do mundo, dos animal, gosto de tudo. Cobra perde o sentido de picá. Amansa de veis no pasto. Num vai mais tê pobrema.”
Lá dentro, o choro, soluços de desespero e lamentações. Inconsolados, reclamavam da indolência dos deuses, para com criatura tão singela. No varal de arame farpado no entorno do terreiro, pendurada sem vida o espicho da surucutinga, surucucu-de-fogo, a excomungada. Cabeça esmagada, sem vida, tarde, porém.
Os ensinamentos e as considerações do todo poderoso se fizeram ecoar no templo. No pequeno esquife, branco como a pura lã, repousava o corpinho inerte da pequena Ulda, enquanto continuava a cerimônia da despedida:
“...porquanto fizeste isto, maldita serás mais que toda a fera, e mais que todos os animais do campo...”
“E porei inimizade entre ti e a mulher, e entre a tua semente e sua semente; esta te ferirá na cabeça, e tu lhe ferirás o calcanhar.”
Enquanto percorria o descampado onde se escondia a pico-de-jaca e uma centena de outros animais peçonhentos, vez ou outra seu corpo projetava meneios parecidos com um bailado de dança. Em dado instante, parava e só a cabeça se movia de um lado para o outro, como se fosse um réptil andando em dois pés.
Corriam boatos de que o benzedor era figura estranha, de gostos estranhos. Seu barraco localizava-se em lugar de acesso difícil na escarpa montanhosa. Alguns chegavam a afirmar que sua residência era uma loca na pedreira que dividia com animais selvagens, com os quais conversava e mantinha relacionamento estreito. Quem tinha ido lá?
Em noites de lua alta, costumava aparentar comportamento esquisito. Diziam ser pessoa de corpo fechado e que virava pedra, toco de pau, ou desaparecia simplesmente diante do perigo.
Falava baixo, em trejeitos descontinuados, num bailado que mais se acentuava em razão de seu calcanhar ferido, como no livro sagrado.
- Mijacão meu sinhor, mijacão, castigo de égua prenhe.
Leia de Wagner M. Martins
FALA, FILHO DA MÃE!!! - Capa Paulo Vieira
UM BICHINHO À TOA. - Capa: Camilinho
Participação:
Livro OLHA PROCÊ VÊ! de Elias Rodrigues de Oliveira
No prelo:
UM INTRUSO NO QUINTAL