Crónicas : 

uma história de familia

 

O meu avô era um homem assim para o anafado, alfaiate de profissão feirante por tradição de família cujo vício comercial estava-lhe entranhado nos ossos. Era um homem de respeito como se usava ser na altura, cordial com os de fora e severo intra-muros que é como quem diz com os filhos e a esposa. De vícios conhecia-se-lhe o gosto pela pinga e o cigarro sempre pendurado no canto da boca afilada por um bigodinho fino que se eriçava à vista de uma garota de bons modos, tentando logo juntá-la à sua longa lista de fregueses. Ali no centro da vilória de Riba de Ave era um senhor que dominava a ponte e a alameda das tílias que desembocava na sua alfaiataria já com uma pequena linha de produção o que para aquele tempo já lhe dava a sumptuosa classificação de industrial. São ainda famosas por lá algumas técnicas de venda que deviam ser objecto de estudo dos actuais compêndios comerciais que se leccionam nas universidades.
Quando sobravam peças de uma estação para a outra o Sr. Delfim colocava-os a um preço mais aceitável criando assim em Riba de Ave a noção de saldos a que ele chamava pechinchas. Se alguém se interessasse por exemplo por um casacão vulgo samarra no pico de verão ele de imediato se armava em técnico de meteorologia dizendo que o inverno estava aí à porta e que ouvira na rádio notícias de grandes trombas de neve vindas da terra nova, “sabe? Lá de onde vem o bacalhau, aquilo ali é que faz frio”. E lá convencia o homem a fazer uma prova, mas como naquele tempo eram quase todos esquálidos devido às frugais refeições que lhes constituíam os cardápios as samarras ficavam invariavelmente largas. Então enquanto o homem se olhava de frente ao espelho ele apertava um pedaço de tecido da samarra nas costas logo abaixo do cachaço alisando os tecidos pendentes na frente. E a mesma operação era repetida quando lhe dizia, “olhe, veja como lhe cai bem nas costas home, isto foi feito para si” e apertava-lhe a samarra ao nível do macho pela frente alisando-lhe as costas. Como se o homem ainda não estivesse convencido da “grande sorte que tivera em encontrar a última pechincha disponível” ele dizia:
– óh meta as mãos nos bolsos, veja como é confortável e quentinha - e virava astuciosamente as costas ao homem enquanto fingia olhar o sol tórrido que se fazia sentir na rua. O homenzinho ao meter as mãos aos bolsos sentia um papel enrolado com um tacto familiar, olhava de soslaio e descobria uma nota de 20 escudos, ao mesmo tempo que o Sr. Delfim se virava de novo certo da descoberta que o homem tinha feito:
- Mas olhe, se não quiser até me faz um favor que eu gosto tanto dela que estava a pensar ficar com a samarra para mim – dizia em jeito de estocada final.
- não, não Sr. Delfim, eu já decidi, vou ficar com a samarra, quanto custa?
- por ser para o meu amigo arredondo isso em 120 escudos e não se fala mais nisso.
Com alguma pressa o cliente até se prestava a ser ele a embrulhar, alguns havia que com medo de ser descobertos até saiam com a samarra vestida sob o sol de verão suando as estopinhas alameda acima.
E o Sr. Delfim ficava a cofiar o bigode com o polegar metido no bolso do colete fazendo contas ao lucro que teve num casaco que venderia por 80 escudos numa feira qualquer.
 
Autor
jaber
Autor
 
Texto
Data
Leituras
1316
Favoritos
0
Licença
Esta obra está protegida pela licença Creative Commons
5 pontos
5
0
0
Os comentários são de propriedade de seus respectivos autores. Não somos responsáveis pelo seu conteúdo.

Enviado por Tópico
Carolina
Publicado: 27/05/2010 21:57  Atualizado: 27/05/2010 21:57
Membro de honra
Usuário desde: 04/07/2007
Localidade: Porto
Mensagens: 3422
 Re: uma história de familia
A ser verdade, o teu avô era um reguila, tens a quem sair rsrsr

Gostei da fineza do senhor Delfim e da forma como
escreveste.

beijo

Enviado por Tópico
jaber
Publicado: 27/05/2010 22:06  Atualizado: 27/05/2010 22:06
Membro de honra
Usuário desde: 24/07/2008
Localidade: Braga
Mensagens: 2780
 Re: uma história de familia
tenho uma tia que diz que se arrepia toda quando eu falo que ao que parece as vozes são iguaizinhas. mas as parecenças fisicas são distantes,quanto ao resto não sei...

Beijo Carolina

Enviado por Tópico
inacoca
Publicado: 27/05/2010 23:46  Atualizado: 25/12/2011 11:49
Participativo
Usuário desde: 13/05/2010
Localidade: Santo Tirso
Mensagens: 29
 Re: uma história de familia
Já vi que anafado pode ser de família, mas a escrita é arejada e bem delineada.


Enviado por Tópico
visitante
Publicado: 28/05/2010 13:24  Atualizado: 28/05/2010 13:24
 Re: uma história de familia
Uma história bem descrita que mostra o grande negociante que eras o teu pai...

Parabéns poeta!

Abraços fraternos!

Rosa