Não tive a honra de conhecer a doutora Zilda de perto,morta não faz muito no Haiti, onde, como médica pediatra e humanista, foi prestar solidariedade ao povo local. Mas pude, sim, entrevistar seu irmão, dom Paulo Evaristo, o cardeal Arns.
Conheci dom Paulo ainda menino, quando eu engatinhava no jornalismo. Dom Paulo, frade franciscano, como seu irmão mais velho, frei João Crisóstomo, havia sido nomeado, pelo digno e progressista papa Paulo VI, arcebispo de São Paulo, a segunda maior diocese do mundo (dizer arquidiocese é puro pleonasmo: a palavra grega "arqui" já quer dizer grande.)
Corria o ano de 1975. Outubro, 25. Eu começava a engatinhar no jornalismo. Mas pertecia à Juventude Comunista. Não tive nenhuma relação profissional ou de amizade com o jornalista brasileiro Vladimir Herzog, ou Vlado, como o tratavam os mais íntimos.
Conheci melhor, algumas poucas vezes, sua mulher, dele, Vlado, não lhe tinha essa intimidade, mas o trato assim agora. Chama-se Clarice. E mãe de André e Ivo,filhos do casal, hoje homens feitos.
O que sei, e história nossa, de jornalistas brasileiros nunca há de negar, é que Vlado foi chamado - era o diretor de jornalismo da TV Cultura de São Paulo apenas para prestar depoimento sobre a infiltração de comunistas na emissora que ele dirigia.
Saiu.E não voltou nunca mais. Foi prestar depoimento no Doi-Codi, órgão de triste memória, e aí quem pode contar melhor a história são os jornalistas Paulo Markun, hoje diretor da TV Cultura, e o nosso companheiro Duque Estrada, parente do autor da letra do Hino Nacional Brasileiro. Os dois estavam presos na cela ao lado de Herzog. E ouviram os gritos. E sabiam do festival de espancamento perpetrado contra um homem indefeso.
Mataram o Vlado de tanta pancada. No dia seguinte, o diretor do Instituto Médico Legal de São Paulo, Harry Shibata, emite um laudo porco e falso: não seria o primeiro em sua não menos porca carreira. Atestou descaradamente que o jornalista se suicidou na cadeia.
A polícia política brasileira exibe, e temos até hoje na sede do Sindicato dos Jornalistas no Estado de São Paulo a foto, ampliada -e bem ampliada -, onde aparece Vlado enforcado com um cinto amarrado na grade. Em anos de jornalismo policial nunca soube que um preso, político ou não, fosse levado à cela com cinto e o cadarço dos sapatos, exatamente para não fazer isso.
Vlado era judeu. E no cemitério judeu há um lugar separado para os suicidas. São considerados sujos. Não podem, segundo os dogmas do judaísmo, dividirem o mesmo espaço com os mortos comuns.
O caixão dos judeus é lacrado. O rabino lava e prepara o corpo, embrulhado num lençol. É quando entra dom Paulo Evaristo Arns na história.
Fazendo prevalecer sua autoridade de cardeal, ele comparece ao velório.
- Isto não foi bem assim - ele diz, já prevendo o que havia ocorrido: mais uma morte por tortura nos porões da ditadura militar.
Os rabinos, serviçais da ditadura, pedem a ele que não estique o assunto. Mas,pelo posto de cardeal, dom Paulo tem poderes de chefe de estado. E, mesmo perseguido, faz valer o seu.
Diz um salmo em voz baixa. E sai. A União,mais tarde, confirma o assassinato de Herzog por tortura. Dom Paulo uma semana depois da morte do jornalista, abre as portas da Catedral de São Paulo para uma celebração ecumênica. Sobem ao altar ele, dom Paulo, um rabino progressista - Henry Sobel - e um pastor metodista, além de dom Helder Câmara, arcerbispo de Olinda e Recife. Foi uma cerimônia sem precedentes na história da igreja católica.
Clarice, a mulher do Vlado, seria a musa da anistia, nos versos de Aldir Blanc, musicados por João Bosco e cantados por Elis: "Chora a nossa pátria, mãe gentil/Choram Marias e Clarices no solo do Brasil."
Um dia, entrevistando dom Paulo, perguntei - porque o convento dos dominicanos em Perdizes, foi invadido pela polícia política e os frades todos presos: "O senhor não tem medo?" Ele com um sorriso me respondeu: "Tenho medo de ter medo."
Nunca mais esqueci isso.
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júlio
Júlio Saraiva