Crónicas : 

Um pedido sonoro

 

Vinha o bispo lá à terra, era uma altura especial, quase como vir o papa a Portugal, engalanava-se a freguesia, limpava-se a igreja até desgastar o granito, e na altura eu ainda miúdo era o responsável da edição do boletim dominical, uma espécie de jornal que nós imprimíamos às sextas à noite até altas horas para estar pronto a ser distribuído na missa vespertina de sábado (era a missa de final de tarde e servia para acalmar as consciências de quem não ia à missa ao domingo) que já tinha direito a homilia tal como qualquer missa dominical que se preze. Ora naquele tempo ainda não haviam impressoras como as de agora, tínhamos de escrever o texto à mão, depois escolhíamos letrinha a letrinha e enfileirávamos numas réguas opostas sobre uma base onde corria um rolo com tinta e então uma máquina de rolo comprimia as folhas contra essa base e “voilá”, tinha-mos uma página de jornal. Mas as noitadas na sacristia da igreja eram complicadas, tinha-mos eu e outros garotos as garrafas de vinho fino (sim, aquele que os padres bebem ao celebrar a eucaristia) e umas hóstias que misturadas num mel que trazíamos de casa davam uma manjar delicioso. Tudo isto misturado com o sono e a minúcia do trabalho de vez em quando dava asneira.
Como eu era um mocinho dedicado às letras quando havia algo mais importante para escrever era sempre eu o dilecto escolhido e como vinha o bispo fui incumbido de escrever a sua biografia e também de tipificar as letras no aparelhómetro que expliquei. Em determinada altura, a biografia do emérito bispo D. Eurico Dias Nogueira falava de um pedido especial que ele tinha emitido á santa sé, ora com os efeitos abençoados do santo vinho e o sono, eu esqueci-me de colocar o primeiro “d” do “pedido” dando assim origem a um sonoro peido que percorreu toda a freguesia sob o som de uma gargalhada a partir do momento que se deu pela gralha no fim da missa vespertina. No domingo na missa que o bispo ia presidir não se falava de outra coisa e eu bem reparava no sorriso de troça das “putas das beatas que cheiravam a mijo” (sei que parece feio mas era o que pensava toda a missa) logo no primeiro banco da igreja enquanto lia as leituras. Sim, que eu era pau para toda a colher lá na freguesia, só me faltava celebrar as missas para dar mais descanso ao preguiçoso do padre, que não satisfeito vem no fim da missa na ante câmara da sacristia pedir-me satisfações de tão estranho pedido:
- Já viste o que arranjaste? Anda toda a gente a fazer barulho, com essa brincadeira, mas o que é que te deu? Não fizeste a revisão? – Disse-me o padre em tom severo.
Eu já cheio de me mortificar com o sucedido, não resisti:
- Olhe ao menos é um peido sonoro, dá para criar um perímetro de segurança antes de começar a cheirar, já os que você dá quando está a celebrar missa vêm sem aviso, são os peidos terroristas, ainda por cima de pantufas por esses saiotes, é pior que napalm.
Não é preciso dizer que fui imediatamente convidado a resignar ao prestigiante cargo de escriba da freguesia.
 
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jaber
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