O que conheci e conheço de mentirosos, daria para encher alguns cadernos. Não que eu seja santo.Também capricho nas minhas mentiras. Ninguém é perfeito. Mas pego leve. Já o Barão,não: é o sujeito mais mentiroso que conheci na vida.
Ele é mais novo do que eu, talvez um ano. Aliás, nasceu no mesmo dia que eu, 6 de agosto. Profundo conhecedor de sambas da década de 1920, ele, que na verdade se chama Ricardo, incorporou uma personagem: Barão.
Quando tínhamos os nossos vinte anos, já fazendo boemia pelo bairro de Vila Mariana, ele se
apresentava como Isaías Bueno de Almeida. Bem esse sujeito, um famoso solista de bandolim, servia para ser avô do Barão. Barão não sabia uma nota de bandolim. Mas reitero: conhecia samba pra caramba.
Vestia-se como malandro carioca da década de 1920, adorava as gírias da época e dizia ter sido casado com grande a cantora Eliseth Cardoso, a Divina, que também lhe servia de avó. Todos nós fingíamos que acreditávamos, não custava nada.
Vai daí que o Barão desapareceu um tempo. Quando voltou, já não era mais Isaías, mas Barão, ja beirando os oitenta anos de mentira e, isto é verdade, exímio tocador de pandeiro. Usava terno, chapéu e uma gravata que se parecia com um lenço no pescoço.
Sabendo que eu era fã incondicional do compositor Nelson Cavaquinho, o Barão, certa noite, surge no bar e me fala: "Vou trazer uma pessoa aqui pra você. Nelson Cavaquinho."
Eu sabia que Nelson Cavaquinho, o genial autor de A Flor e o Espinho, entre outras pérolas da música brasileira, estava em São Paulo, onde fazia uma temporada ao lado da cantora Clementina de Jesus, outra das minhas paixões. Mas até aí pensei tratar-se de mais uma mentira do Barão, disposto a beliscar uma dose de cachaça paga por mim.
Ledo engano. Meia hora depois, o Barão retorna, com Nelson Cavaquinho ao lado, seu violão de cordas de aço, seu terno surrado e a inconfundível voz rouca. Atravessamos a madrugada bebendo e ouvindo os acordes mágicos do violão de Nelson mais os seus sambas. Lembro-me que era Sexta-feira Santa. E eu não sei por que cismei, pela manhã, de porre, de ir à igreja. E fui na companhia do velho Nelson. Só que, mal dormido e bêbado, acabei dormindo no banco da igreja. Desperto, saio do templo com Nelson. Entramos no bar. Deus castiga? Nem tanto. Percebi que não tinha um único documento. Volto à igreja e vou achá-los no chão, intactos. Assim, começamos novo porre. Não é sempre que se tem uma companhia como Nelson Cavaquinho, o Nelson Antônio da Silva, para beber. Hoje, rendo a minha homenagem a ele, que não está mais entre nós. E nem tocava cavaquinho, mas violão. À saúde, Nelson!
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júlio
há um erro meu. e quase irreparável: as músicas de de nelson cavaquinho quase todas são letradas pelo poeta guilherme de brito, o seu fiel parceiro. nelson foi um gênio como melodista. alcides caminha entrou de gaiato na parceria. nelson vendia sambas para comer e custear suas boêmias.
Júlio Saraiva