Poemas : 

Quem sou eu? Onde está meu pai?

 

Passos pelas calçadas. Vontade louca de fumar.
Tento pensar em outras coisas. Passa mais uma moto.
Mais um carro. Quando para casa voltar?
Já estarão sentindo a minha falta?

Pessoas secas passam. Frias. Mortas.
Caminham zumbis por essa cidade.
Fedem. Mas um cheiro que se percebe
Pelos olhos; Se nota pelas suas caras.
Ocas. Lojas abertas. Roupas expostas,
Multicoloridas, estampadas. Manequins
Sensuais decapitadas. Quebra-molas.
Paro. Penso no cigarro. Abstinência.

Reflito: O que quero? Quem sou eu?
Decido: Vou voltar!
O retorno sempre é mais difícil. Viaduto.
Quando ainda não se curou uma ferida
Crônica. De forma caprichosa: Cônica.
Vejo sorrisos. Sumiram na noite fria.
Perderam-se na profusão de tanta noite
E pouco dia. Perderam-se nas lamentações
Diária das velhas tias. Tias que tossem:
Tossem, Tossem, Tossem...

Avós que aguardam pelo seu último dia.
Quem me dera tivesse as garras afiadas
Para poder rasgar essa pele pobre que me encobre.
Poder para raspar esse pêlo espesso que me envolve.
Num minuto poder fazer do seu sorriso o meu tesouro.
No outro subseqüente fazer nuvens saírem do meu pescoço.

Lembrei-me de um outro poema em que o sujeito volta
Como volta um tio bêbado à casa do sobrinho.
Não voltava alegre como um rio. Voltava como um tio: Bêbado.

Como voltar para casa?
Não suporto álcool;
Não tenho sobrinhos;
Não tenho cachorro para me sorrir latindo;
Não tenho retrato amarelado pelo tempo na parede;
Não tenho certeza de que alguém me receba de braços
Abertos, com os olhos cerrados e com os lábios
Entreabertos... Não estou certo...Também, depois de ontem...
Mas se só temos o hoje?

Continuo a caminhar por essa cidade fria e fedorenta.
Essa solidão gratuita me fortalece.
O passeio foi bom para mim.
Precisava mais de mim mesmo.
Apenas um tempo comigo.

Queria fumar. Procuro um cigarro inutilmente.
Passou um cãozinho por mim. Acho que me segue.
Não vou dar bola, senão irá me seguir até em casa.
Casa? Onde moro? Quem sou eu? Onde está meu pai?

Porque nunca tive o meu cachorrinho?
Porque não tive uma Caloi? Um Ferrorama?
Porque não namorei a menina que amei no primeiro ano escolar?

Ando em círculos. Vejo uma praça que conheço.
A mesma praça vazia de sempre:
Sem árvores. Sem folhas.
Apenas pedras pintadas.
Mais nada.
Sozinho na praça:
Quem sou eu?
Onde está meu pai?






Gyl Ferrys

 
Autor
Gyl
Autor
 
Texto
Data
Leituras
1472
Favoritos
0
Licença
Esta obra está protegida pela licença Creative Commons
4 pontos
4
0
0
Os comentários são de propriedade de seus respectivos autores. Não somos responsáveis pelo seu conteúdo.

Enviado por Tópico
eduardas
Publicado: 17/05/2010 18:04  Atualizado: 17/05/2010 18:04
Colaborador
Usuário desde: 19/10/2008
Localidade: Lisboa
Mensagens: 3731
 Re: Quem sou eu? Onde está meu pai? p/Gyl
Este teu poema que me entrou bem fundo, lembrou-me o Cântigo Negro de José Régio.

Aplaudo e faço vénia.

bj
Eduarda


Enviado por Tópico
visitante
Publicado: 17/05/2010 21:44  Atualizado: 17/05/2010 21:44
 Re: Quem sou eu? Onde está meu pai?
Belo poema, melancólico, caótico, bem contextualizado, adorei, levo comigo!