O vasto elenco da inusitada comédia humana que protagonizamos tem a infinita capacidade de surpreender a cada dia. Mesmo o espectador mais experiente nesse cenário complexo em que ele mesmo está inserido sente o choque da surpresa inesperada diante de determinadas cenas cotidianas. Tudo é possível e pode acontecer nesse teatro ao ar livre vivido por homens e mulheres com seus próprios universos individuais e idiossincrasias inacreditáveis. Por vezes, o risível, em sendo corriqueiro, se torna absolutamente natural aos olhos habituados a esse mister, de modo que já não causa tanto espanto. Um sujeito sem braços fabrica belíssimos e inigualáveis brinquedos usando somente a destreza dos pés; em plena praça pública alguém come pedaços de lâminas de barbear ou espeta nos lábios ou na boca imensos pregos para chamar a atenção; uma mulher maluca se despe numa rua movimentada e faz suas necessidades na frente da multidão;enfim há inúmeros atores nessa estranha comédia interpretando a si mesmos enquanto despertam sorrisos maliciosos e disfarçados dos seus pares.
Mas aquela velhinha sobrepujou-os a todos pela singeleza de sua atitude inerte, o ar de criança serena esquecida pelos pais na quietude do entardecer melancólico, e por causa do olhar que parecia prisioneiro de um passado longínquo. Trouxeram-na sentadinha na cadeira de rodas a lembrar velho trono de alguma rainha já destronada e abandonada a esmo pelos antigos súditos prestativos. Os ralos cabelos tão alvos como flocos de algodão estavam penteados e ainda molhados, uma presilha prendendo uns tufos rebeldes. O vestidinho sem beleza cobria-lhe o corpo sugado como uma fruta madura ao longo dos anos, indo do pescoço às proximidades dos pés graciosamente esparramados numa sandália desbotada e fora de moda.
Viam-se as veias esverdeados serpenteando-lhe os braços esquálidos e a ínfima parte visível das pernas juntinhas lembrando bananas gêmeas grudadas umas nas outras.
Emocionou-me sobretudo e mais que nunca a pequenina boneca toda vestida debruçada em seu colo, os quatro ou cinco raminhos de flores numa das mãos e o estojo singular onde uns poucos anjos de louça sorriam felizes na outra. Tocante o momento, tristes as emoções, e laivos de indizível amargura quiseram encher-me os olhos de lágrimas ante aquela débil figurinha abatida pelo peso do tempo. Perpassou-me súbito ímpeto de abraçá-la, levar-lhe esperança e consolo, abrir-lhe o sorriso no rosto. Porque, ponderei, decerto o manancial de alegria outrora talvez transbordante provavelmente há muito esvaziara transformando-se em árido deserto. Não lhe vislumbrei no rosto qualquer resquício de primaveras vividas, de felicidade ao menos sonhada, de devaneios ou desejos. A cabeça caía para o lado direito, os olhos se perdiam nas sombras desnorteadas do passado, ela como que - quem sabe? - voltara aos primórdios da infância. Nada a fazia apegar-se à vida, exceto quiçá a bonequinha deitada no seu colo, as poucas flores já murchas e os anjinhos agarrados quase de maneira sôfrega pelas mãos trêmulas.
Daí a instantes, solícito e sorridente, o médico chegou cumprimentando-a alegremente sem dela obter nenhum sinal de compreensão pois como estava ao ser trazido para o consultório assim permaneceu, e saiu a empurrar a cadeira de rodas por um corredor que levava a sua sala de consultas. As duas jovens acompanhantes da senhora idosa os seguiu e também meus olhos agora inegavelmente molhados.
Gilbamar de Oliveira Bezerra