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RETROSPECTIVA

 
RETROSPECTIVA


Viro-me para o espelho do passado
Como alguém que procura uma definição
Na imagem reflectida na penumbra.
Perco-me entre as sombras do que foi uma vida
Que me insulta de tanto tédio!

Tento discernir os limites ocasionais de um sonho
Que pretendo tão real quanto a ambição
De transformar o nevoeiro em rochedo.

A realidade esmorece no brilho de um projecto
Que arregaça as mangas na fantasia
Revela-se na cozinha dos meus sentidos
É a alquimia da vontade!

O ocaso do presente à força de repetição
Conclui que lhe pertenço de corpo e alma
Sem que entenda porquê…

Empurro as emperradas portas de aço
Que se arrastam pelo chão do meu sangue
Com um ruído estridente e aterrador!
Sinto-as sulcar a areia do meu cérebro
Impiedosas! Flageladoras!
Prenderem-se nas pedras da minha vontade…
Teimam manterem-se trancadas!

São as portas do desejo…
Podiam ser do céu…
As portas por onde terão de passar os meus passos
Reciclados na urgência de uma luz que tarda
E sem que possa olhar para trás
Nem escutar o chamamento de uma voz
Enchem-me de punhaladas e defeitos
Por cada hora acrescentada a mim!

Eu sei
Que a dor rasgará o peito de serena paixão
Fará doer a alma
Como uma coroa de espinhos a enfeitar a aflição!

Eu sei
Da culpa por tudo quanto devia ter dito e calei
Apenas porque o mundo me ensinou a revolver no silêncio
O obsceno ultraje de ser quem sou
Resignando-me ao pouco que recebo
Em troca pelo que dou!

Agora
Resta-me distribuir pedaços de desculpas
Baixar os olhos à alegria complacente
Amarrotar o ego às vergastadas do ódio…
No cúmulo da chantagem
A humilhação de uma aflição total
Como se uma Hiroshima sem valores
Explodisse numa “Enola Gay” de sabedoria
E eu não fosse mais que o cogumelo
Resultante da anarquia dos átomos em choque!

Sei
Reconheço em todos os crucifixos os meus pregos!
Em todas as fogueiras as minhas achas!
No carvão o filtro da condenação!

Sei
Um pedaço volátil de coisa nenhuma
Representará a dignidade ou o que sobrar dela
Quando todos os hemisférios representarem a tese
De uma plateia patenteada de insultos!

Não quero nada disto…!

Quero apenas uma janela aberta aos plátanos
Uma pincelada de luminosidade nos lagos
Um céu imenso para voar…
Uma viagem intemporal pelo espaço
Ou um espaço para repousar…

Não me queixo… Não lamento…
Recuso tão-somente o sofrimento de que sou carrasco
Quando quero apenas um sorriso em flor…!
Porque não é diferente o mundo?!
Porque me força o amor a vandalizar
O altar-mor da felicidade quando só quero paz!?
Que embaciada luz…!
Que golpe atenua a culpa
Fazendo-me lamentá-la ao invés de o lamentar?
Que erro forja horrores na minha tranquilidade?!

Quero ver um sorriso à minha partida!
Um naco de sol no meu caminho!
Uma mola de esperança no meu estendal –
Porque ela é um trevo escondido
Numa floresta de vida e cor!
Abram alas as nuvens que me cegam!
Dissipe-se a névoa que me oculta!
Queime a trovoada os silêncios do meu canto!
Não quero um xisto de lágrimas!
Não quero uma gota de sangue de insultos!

Compreendam…
Sou aquela andorinha
A quem cortaram as asas
E sem desistir de querer voar
Nunca castraram!

Abram-se as janelas!
Libertem os parapeitos!
O meu ninho são todas as árvores!

Quero seguir a rota do sol!
O mesmo caminho que as tempestades de areia ocultam
Quando as sombras são nuvens de mentiras
E a verdade uma semente de cristais e pérolas!
Já deixei a vertigem no cimo duma torre!
Já não vergo ao peso dos temores!
Agora procuro por entre as varandas um poleiro
Sobrenatural e distante
Onde possa adormecer o coração errante,
Pôr a mesa farta de antigos ultrajes,
Vestir-me de panteras pelos lodos da intolerância!

Teve de ser assim!
Este semblante farto de jubas e vigílias
É o resultado de tudo quanto fui!
A hora de hoje afastou-me a tempo da obscenidade
De temer ser tão fútil quanto a futilidade
Das lágrimas retidas dentro de armários
De noite trajados!
É esta a chave!

Vislumbro ao longe um olhar vazio
Parte integrante de um fantástico sonho
Intendente na casa da verdade.
Como cego sigo-o… Como cego vou…
Como cego sirvo-me do cão guia
Que pela trela me conduz através da fantasia
E faz disparar de emoção o coração.

Quero viajar eternamente nas asas desse sonho!

Que posso fazer?
A vontade é aleatória como a consciência
E eu nem invento pazes…
Apenas debito à vontade o grito de ir…
De ir….
Apenas ir!

Amarroto os lençóis da noite à espera de uma voz
De um canto
Rouxinol suspenso no delírio de ti…
Porque tu existes!
Porque a tua carne e sangue e alma
São tudo o que se acrescenta ao meu sonho
Como parte dinâmica da minha força!
QUERO O SOL!
Esse sol mesclado de iras e sorrisos e esperas!
Esse sol inflamado que arde nas veias
E é fogo
E é inferno
Algo que nos enche de desejo e paixão!
É amor!

Que sei eu?!
Num momento… Em todos os momentos
A ribalta da alma exulta um gemido de prazer
Um sorriso tímido
Na oculta face de um prisioneiro libertado!
SÓ QUERO AMAR!
Agora que as algemas se quebraram
Posso subir às colinas dos homens
E voar… Voar… Voar…

Oiço os disparos dos rifles do mundo…
Abriu a época da caça…
As miras perscrutam o espaço…
Só quero voar… Voar… Voar…

Aspiro o perfume dos limites do céu!
O mar espelhado no limbo das folhas!
A loucura de ser o pássaro sem asas
Que destemido se lançou de todos os abismos
E cantando voa… Sorrindo voa…
Pelo cerne dos mais hábeis instantes!

Por baixo estende-se uma seara de rubis
Reflectida no espelho dos lagos
Que vibram com a ardente cor da paixão
Num manancial de odores e lábios!
Um paraíso emerge no cimo de um monte
Vestido de branca tolerância e paz!
Vibra pelo ar o esvoaçar de um insecto…
Uma joaninha confidência à formiga
Que apenas quer ser feliz…

Sou o convexo dos espelhos!
Concavo das vontades
Que querem ser tão livres quanto eu!
Todo o meu corpo se abre
Num paraíso de estrelas
Onde apenas sei voar… Voar… Voar…

antóniocasado



29 Abril 2010

 
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antóniocasado
 
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Enviado por Tópico
luciusantonius
Publicado: 04/05/2010 23:38  Atualizado: 04/05/2010 23:38
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 Re: RETROSPECTIVA
Texto abundante e rico, prenhe de palavras entendíveis (para a minha capacidade de entender, obvio). Ler este poema não é perder tempo. Parabéns

Antonius