Poemas : 

Cleópatra Dançarina

 
Só, vejo-me ante a página branca:
A mão engelhada, inerte e exangue
Da tinta vermelha e do negro sangue
Que o noctívago solilóquio estanca.
As luzes das estrelas são sudários
Encobrindo-me as palavras – crisálidas
Manifestações lívidas e pálidas
De débeis e abortados poemários.
Mas ei-la: aparição na brancura,
P’la noite adentro e p’la noite afora,
Almiscarando a alvorada madura...
Descubro-a na veste alva que a esconde
(Trémula doce arauta da aurora),
Amante milenar de um país onde

Das lúbricas areias se erigia
A dissoluta Rainha Cleópatra
Que bebeu o sangue dos faraós,
Dos deuses favorita fantasia...
Tresloucada, viajava pelo Nilo,
Como fosse montada num trenó
Feito de luzes e raios de sol,
Buscando marcoantoniano asilo.
Mas em vão: os musculados e fortes
Braços do romano gladiador
Estavam agrilhoados pela Morte...
Nunca mais veria o seu amor,
O Destino levara-lhe o consorte...
Só restava-lhe um deserto de dor...

Foi assim que a Bela Egípcia virou
As costas ao mundo e à própria vida
E que, numa velha língua esquecida,
Aos deuses e aos homens renunciou,
Pondo-se a caminho do sol poente.
Nos meus versos, as mal acentuadas
Sílabas tónicas são as pegadas
Que os seus pés deixaram na areia quente.
Se eu fechar as pálpebras, ouço e espreito
O sussurrar das folhas no desértico
Coração do poema cujo peito
Atravesso para me alimentar
Do leite de Cleópatra, profético
Vislumbre do seu berço tumular.

E quando ela alcança o topo dos céus,
Vira-se para baixo, de olhar líquido,
Serpenteante foz do fluir nílico,
Deusa que reúne crentes e incréus;
Todo o Cosmos ao Egipto se junta
Como para ver um prodígio bíblico
Que obedece a regras do tempo cíclico
Materializado na bela defunta.
E quem não lhe percorre as esguias
Pernas (que parecem auto-estradas
Onde caravanas de emoções, dias
Após dias, seriam transportadas)
Ainda que, de mortas, sejam frias?
E as unhas quando na carne cravadas

Sabem ao toque dos escorpiões...
Os seus cabelos, longos e escorridos,
São negro chocolate derretido
Por lume sustentado por paixões...
Com o corpo projectado nas dunas,
Onde o vento quente os seios lhe beija,
Perfila-se quem o mundo deseja,
Tatuada de hieróglifos e runas:
A inventora de todos os sentidos,
Sob a pele cor de aroma de café,
Acena-me de dedos estendidos
Do alto da Grande Pirâmide de Gizé,
Masturbando-me em lentos passos de ballet...


Uma mão angelical afaga-nos o cabelo e toca-nos o sexo em cada momento de desespero…

 
Autor
AlexandreHomemDual
 
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Enviado por Tópico
Sterea
Publicado: 03/05/2010 16:59  Atualizado: 03/05/2010 16:59
Membro de honra
Usuário desde: 20/05/2008
Localidade: Porto
Mensagens: 2999
 Re: Cleópatra Dançarina
Bem! Poesia assim é de tirar o fôlego! Sinto-me pequenina e trôpega, nos meus passos de ballet... Há muita arte no que escreve. Precisão no dizer, sonho no que alcança, viagem no que imagina(mos)...

Parabéns e benvindo!


Enviado por Tópico
Runa
Publicado: 03/05/2010 17:46  Atualizado: 03/05/2010 17:46
Colaborador
Usuário desde: 24/04/2010
Localidade: Santo Antonio Cavaleiros
Mensagens: 1174
 Re: Cleópatra Dançarina
Está excelente. Foi a primeira vez que li um texto teu, e adorei. Parabéns.

1 Abraço.


Enviado por Tópico
anakosby
Publicado: 04/05/2010 01:35  Atualizado: 04/05/2010 01:35
Colaborador
Usuário desde: 12/04/2010
Localidade: Torres
Mensagens: 1739
 Re: Cleópatra Dançarina
Primeiro texto teu que leio, fantático.
Gostei imensamente, tem o dom de transportar-nos no tempo. Parece que tens a visão a a narra em forma d versos.
Gostei muito mesmo.
Grande abraço.