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PA-QUE-TA, PA-QUE-TA

 
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PA-QUE-TÁ, PA-QUE-TÁ, PÁ-QUE-TÁ

Quando a paz voltar, Reudir voltará. Também os dias floridos da pacata, pacata, pacata, cidade. Em Paquetá, o mais romântico dos bairros do Rio, os meus dias, e noites, ajardinados.

A guerra teve início quando me deixei enredar e ser surpreendida em meio ao trotes pacatos, pacatos, dos animais em suas charretes permitidas; voz de riso, vez de choro.

Na Ilha de Paquetá, Rio de Janeiro, Brasil, gozamos do sossego bucólico oferecido por suas leis e sua gente que preferem paz e rejeitam a poluição dos carros. Meu lépido caminhar se fazia freqüente em suas ruas e nada me nublava o sorriso de mulher feliz e bem-amada...

Pela terceira vez ele me seguia vencendo as ruelas serenas. Os meus passos moderaram-se, não se mantendo na prudente pressa das vezes anteriores.

Reudir tanto mudara ultimamente... ou fora eu a sofrer as mutações? Não creio. Afinal, ainda era diariamente comida pelos olhos de homens que cruzavam comigo nas ruas. Estranhos ávidos, prometedores, lúbricos, que num rápido olhar tudo me pediam e tudo ofereciam.

Achei-me com Reudir mesmo, numa noite friinha. A praia era a paz desta Ilha. Os flertes na Pedra da Moreninha, na Imbuca... Com paciência e medo aguardei que sua habilidade estendesse na areia os grilhões da minha defensiva. Depois que ele me fez, um imenso bem invadiu-me corpo e alma. Tinha confiança nele, o meu homem – o meu primeiro homem.

Voltamos à Ilha casados e dispostos a adoçar com muito mel a lua cheia da nossa felicidade. Gostamos tanto que por fim nos vimos residindo por lá.

***

Os passos macios do mocassim branco, calça creme e camisa branca, sugeriam a presença de um vulto perfumado às minhas costas. Chegou-me aos ouvidos uma voz educada. As coisas que dizia exigiam resposta incontinente, dadas a incrível cortesia e naturalidade de seus gestos. Entretanto, séculos de condicionamento impediam-me de abrir a boca. Devia então escapar dali, prosseguir na minha ida. Por que diminuí os passos? Por que parei? Nada havia naquela vitrina que me pudesse interessar. Eu nada falava, mas ouvia.

E aquela voz insinuante não parava. O homem falava, falava, falava, transtornando-me todo raciocínio. Um langor que me fazia imaginar à altura de quem dá as cartas (se eu fosse ele iria, mas se eu ficasse, ele ficaria, se voltasse ele voltaria, cerco pertinaz e insinuante) tomou conta de mim, mantendo-me serena e confiante. Fiz meia volta e encarei aquele olhar preto das areias do Saara. Misterioso e sorridente. Calmo, nada estonteante. Pensei num amigo meu, parecido. Quase perguntei se eram parentes.

As mudanças no comportamento do meu marido não empanaram em minha mente o brilho das caminhadas ao som dos cascos das charretes, que costumávamos dar à tardinha ou nos horários cedidos pela azáfama de ganhar o pão. O tempo nos fez esquecer de nós dois o que primeiro não quis mais. Em criança, desenhava com freqüência um monstro e os outros queriam saber seu nome. Nunca pude satisfazer-lhes a curiosidade. Hoje reconheço o monstro que devorou o sabor dos passeios na Ilha: Rotina. Mas, direis, passeio não é rotina. Ora, direi, dinheiro também é rotina, entretanto dele ninguém enjoa. Guardo, maridinho, no meu mais profundo ser nosso esconso romance. Para quando a paz retornar.

***

Se a guerra foi declarada no dia da minha surpresa, as hostilidades de muito a antecederam. Eram briguinhas aqui e ali. Nas festas, recepções, visitas. Mas por que fico eu a relembrar tudo isso? Importante é a espera do seu regresso. Naquele dia (não pretendo colocar nele toda culpa – sei a errada que fui), meu belo, você criou um caso monumental. Variante não de todo inédita entre nós para o tradicional “beijinhos matutinos na boca de café”.

A esmo vaguei e o homem de calça creme surgiu em minha vida pela terceira e fatal vez. Via-o sempre com medo de que Reudir descobrisse. Seria a queda do meu mundo. A derrota do meu time.

Adquiri rapidamente o hábito de subir as escadas de madeira. Bastava pequena derrota na luta empenhada em casa e as escadas que levavam ao ridículo quarto do meu amante eram escaladas. E elas não rangiam, cúmplices na tarefa de me apaziguar a consciência. Quase sempre a porta encontrava-se apenas encostada. No seu interior, estirado e fumando tranquilamente, o homem que me acariciava toda. Metodicamente. Como se tratando de um ritual mágico destinado a me purgar os problemas. E eu os via sair todos, um a um, pelos poros do meu corpo, a cada toque mais ousado. Usava em mim como um cinzel nas mãos de mestre, todo o seu corpo macio, este meu cirurgião de dores. Depois permanecia deitado, este homem que de novo me amara por inteiro, dos pés à cabeça, num crescendo de louco êxtase e completude. Com um sorriso estimulante permanecia me contemplando ao deixar o seu quarto, leve e refeita, pronta a enfrentar mais um dia.

***


No superlotado bondinho de Santa Tereza uma cabeça parecia querer ocultar-se. A visão fugaz daqueles cabelos negros, que amo, deixou-me o coração aos saltos. Teria Reudir me avistado ao sair daquele prédio?

Nem os portais de um presídio ter-me-iam causado tanto receio. O portão da minha casa, entretanto, atraía-me com estranho magnetismo. Após rejeitar a milésima desculpa imaginada para lhe impingir, aproximei-me ansiosa. Estava lá, descansando sobre uma poltrona, a carta dele. “Desapareço a fim de procurar esquecer ou a você ou à situação de fato. No primeiro caso serei feliz, no outro, não sei. Voltarei quando terminar a guerra. A guerra conjugal, estabelecida em nosso lar por insidioso vírus. Quando esta guerra se for, trarei paz a esta Ilha que só convida ao amor e à beleza. Ambos, amor e beleza, terríveis mistérios que por certo trarão luz à nossa perplexidade”. Não tinha assinatura.

Cedi a casa em aluguel, atravessei a baía e, no continente, aguardei a volta do único dono do meu coração. Embora a saudade, não tornamos à Ilha. Preferimos nos absorver em um maravilhoso reencontro no asfalto da cidade grande. Sob a bênção da selva de pedra que nos abraça e bafeja com materno ar poluído, que não conduz à poesia, deixando, por isso mesmo, em paz o nosso coração.


Xenon, o Mentalista.
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Xenonmentalista
 
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