Desperto, confuso e apavorado
com o estertor que rasga a alvorada,
no pulsar do telefone estremunhado
escuto o rugir da derrocada.
O medo e o pavor atiçados
chamam do outro lado da linha,
o frio e os ventos gelados
ostentam a gadanha rainha.
À pressa visto o blusão,
os sapatos e a calça fria,
ainda agarrado à ilusão
devoro a longa escadaria.
Corro na noite, atordoado,
atravessando a estrada deserta,
meu coração bate, desvairado,
nó que se agiganta e me aperta.
No quarto de mágoas pintado,
encontro teu corpo sem chama,
a morte, brinca com o baralho viciado,
sentada na borda da cama.
Sacudo-te, grito, chamo por ti, aflito,
buscando tua luz perdida,
mas, neste jogo maldito,
já não tinhas o ás da vida.
O médico que viste crescer,
chega em menos de uma hora,
sem nada poder fazer
senta-se no sofá e chora.
Almas tristes vão chegando,
para teu derradeiro acto,
vendo o gelo galopando,
à pressa, vestimos-te o melhor fato.
Atiram teu corpo num caixão
e a tampa é cerrada,
choro e comoção
acompanham tua retirada.
À rua, sai o cortejo,
em dolorosa agonia,
nas janelas cresce o rumorejo,
ainda mal começou o dia.
Deslizando no nevoeiro
volto a casa para me recompor,
sob as aguas do chuveiro,
em lágrimas, lavo minha dor.
Recuperando o fôlego perdido,
de luto saio trajado,
ainda confuso e aturdido
volto para junto de teu corpo algemado.
Envolto em silêncio ameno
repousas em lençóis rendados,
teu rosto, agora sereno,
permanece de olhos vendados.
Acordar-te queria eu poder,
mas sinto que não sou capaz,
resta-me consolo por saber
que finalmente dormes em paz.
O tempo arrasta-se, lento,
o sol vai rumando ao poente,
esforçando-se por doar alento
de todo o lado chega gente.
A noite apossa-se do dia,
cresce o rumor da multidão,
negros véus na ventania,
uns vêm, outros vão.
Quando a multidão se esvai nas vielas,
dorido, o silêncio retorna,
flores cansadas e luz de velas
decoram a saudade que nos adorna.
Pela fadiga acossado e mordido
fecho olhos a triste dia,
entregando meu corpo rendido
às sombras pungentes da sacristia.