Viajar e olhar as estrelas.
Um belo dia enquanto carregava sua carcaça pelo caminho da vida ao longo da auto-via sobrevivência no sentindo nascimento-morte, em alta velocidade, ela viu o carro dele passar.Era um carro simples, ano 1971, como o seu, sem muitos acessórios ou luxo, mas um bom carro. Mas o que lhe chamou atenção não foi o carro, foi a forma com que ele o dirigia e as letras que pingavam de seu cano de descarga.
Dirigia com a cara para fora da janela olhando as estrelas, os cabelos esvoaçando ao tempo emolduravam o rosto sorridente de louca felicidade. Ela pensou: “Como pode alguém neste trecho da estrada dirigir, sorrir e ainda por cima olhar as estrelas?”
Ficou curiosa, acelerou seu pequeno Corpus ano 71, (um modelo popular mas valente, como costumava se justificar aos amigos que lhe sugeriam trocar por outro com air bags frontais, linhas aerodinâmicas, e traseira com desing moderno). Acelerou, emparelhou o carro e ficou observando ele dirigindo, sorrindo e olhando as estrelas. Sentiu vontade de buzinar, abanar, fazer um sinal, chamar atenção... Quando iria enfim buzinar para avisar que estava escorrendo letras pelo cano da descarga, viu que ele dava sinal de luz, sinalizando que entraria no posto de serviço à direita da pista.
Reduziu a velocidade, precisava saber quem era aquele homem, sinalizou e o seguiu até o posto.
O Corpus 71 dele parou. Ele desceu em direção ao banheiro, ela ficou observando. Não era o homem mais belo do mundo, mas havia algo nele que era mágico, talvez no seu jeito meio curvado de andar, seu balanço meio malandro, seu olhar louco de quem olha estrelas. Não sabia direito como definir o que acontecia, algo a impelia em direção aquele homem que sorria.“As letras, sim as letras...” Tinha esta desculpa. Olhou para o cano de descarga elameado do carro dele e viu um rastro de letras deixado ao longo do caminho.
Entrou no posto, a pretexto de esperá-lo comprou um livro ligth de baixas calorias, ( não era mais nenhuma menina, precisava cuidar da forma) e ficou enrolando enquanto comia uma página e outra daquele livro sem graça, na esperança que ele entrasse no posto.Enfim ele entrou, ainda fechando a braguilha das calças, dirigiu-se ao caixa para pagar o combustível, quando já ia saindo, ela não resistiu e o interpelou.
- Moço, boa tarde, o senhor me desculpe interromper porém tem letras vazando de seu cano de descarga.
- Ah... Muito obrigado.
Disse ele enquanto olhava ela de cima a baixo e sorria com um rizinho maroto ao lado da boca. Completou.
- Gostei desta tua camiseta.
Ela olhou o próprio peito e observou a estampa da camiseta que seu filho havia pintado na escola onde estava escrito em letras garrafais. “Precisa-se de um amor.”
Corou, ficou meio sem jeito, sentiu um frio na barriga, que não sentia desde o quilometro quinze, bem no início da viagem, onde tem aquela lomba enorme que ela havia descido em alta velocidade. Ele sentiu o embaraço dela, riu de novo com um charme irresistível e disse:
- Não te preocupes com as letras, toda vez que uso combustível “adjetivado” ele fica assim. Mas não atrapalha em nada embora a estrada possa ficar um pouco manchada.
- Qual teu nome? Perguntou.
- Cassandra.
- Cassandra? Como no mito?
-Sim...
E as palavras lhe fugiram.
- Onde vais Cassandra?
-Vou em direção a velhice, estou quase lá.
Ele sorriu de novo.
Ela teve certeza, quase nem acreditou, agora, quase no meio da estrada, estava AMANDO. Ela tinha certeza, sentiu aquele frio na barriga, aquele estremecer nas pernas, aquele ar voador, aquele desejo de tocá-lo, senti-lo, de beijá-lo aquele desejo há tanto já esquecido. Perguntou-lhe.
-Onde vais? Que corres tanto.
-Vou encontrar o meu amor, que me espera no próximo fim de semana.
Ela sentiu o chão abrir-se sob seus pés, sentiu um “embrulho” no estômago, ficou pálida, um fino suor escorreu pela testa. Sorriu, desejou-lhe boa viagem e entrou em seu velho e valente Corpus 1971.
Novamente na “auto-estrada”, acelerou o carro até não mais poder, na tentativa de nunca, novamente, ser alcançada pelo amor. Olhou para trás e observou um rastro de letras sendo deixado pelo cano de descarga do seu carro, pensou: “Deve ser falha do modelo mesmo ou o frentista filho da puta enfiou o combustível “adjetivado” no carro.” Ligou o para brisa para limpar uma lágrima que lhe atrapalhava a visão, olhou a placa sinalizando um desvio “ Morte”, pensou um pouco, mas resolveu não virar o carro no sentido em que a placa indicava, ao invés, abriu janela do carro, enfiou a cabeça para fora, reduziu a velocidade e resolveu viajar olhando as estrelas.
Afinal, não tinha pressa para chegar ao seu destino.
Ana Lyra