Crónicas : 

Abril por cumprir

 

Não sou muito de celebrações, de ter erecção com o dia dos namorados, ou masturbar-me no dia das bruxas mascarado de Maga Patalógica e só não me esqueço desses dias porque o estúpido consumismo capitalista se encarrega de me avisar com dois meses de antecedência. Sou confiável no que às emoções diz respeito mas pouco dado a datas de conveniência ou sentimentos encomendados por lágrimas arabescas em rostos condoídos não se sabe bem de quê, nem elas próprias, não se apercebendo do ridículo em que caem.
Mas sou leal à história, à minha história, e não renego as origens e seus significados mas renego muitas vezes as derivações políticas e sociais de um determinado momento, não me contento em festejar agitando as bandeiras da efeméride sem pensar no que se ganhou e acima de tudo no que se perdeu porque isso seria uma hipocrisia maior. A revolução dos cravos, se foi realmente revolução, foi-o no agitar de mentalidades, no romper da longa cortina que nos amarfanhava, toda uma nação que deu um passo orgulhoso em direcção à modernidade. Mas esta nação no meio das euforias que sempre acompanham esses passos, desde os descobrimentos, passando pela implantação da república e pelo 25 de Abril desaguando na entrada da comunidade europeia, descura sempre um factor importantíssimo que é a gene que constitui os indígenas que aqui habitam. A génese dos nossos políticos que espaldados nas traições e enganos a que nos remetem a cada acto eleitoral se legitimam numa espécie de impunidade que atravessa em diagonal toda a estrutura social deste povo.
Temos ex governantes presidentes de empresas que tutelaram enquanto ministros, temos uma imprensa que tem medo de agitar os fantasmas que se apalpam nos corredores do poder, todo um aparelho de justiça e judicial que além de conivente com o poder é perfeitamente obtusa e com medo de perder regalias nega-se a mexer nos seus princípios estatutários. Uma constituição ultrapassada que não permite avanços reais no bem-estar social mas na qual ninguém quer mexer para que os “boys” continuem a ter os “jobs”. O poder económico infiltrado nos corredores do poder politico com parlamentares que são ao mesmo tempo advogados e conselheiros de empresas sobre cujos interesses legislam, e para coroar a longa lista um primeiro ministro que tem uma licenciatura falsa, e mais sujo que um pau de galinheiro está envolvido em todos os escândalos financeiros dos últimos 10-15 anos em Portugal, vais duas vezes por mês ao parlamento e não há ninguém que se atreva a chamar-lhe ladrão em toda aquela cáfila que come os nossos impostos.
Entretanto é eleito para liderar a oposição um elemento que vem da administração de um grupo de empresas com fortes interesses estratégicos em quase todas as áreas do poder nas áreas de consultoria e fornecimento de serviços. Espera-se novas desse quando for eleito primeiro-ministro, porque ele será eleito, o aparelho prepara-se para mudar a cara do leme mas o rumo será o mesmo.
Abril infelizmente não foi cumprido nem será nunca porque o poder nunca é decapitado como deveria. A Salgueiro Maia, Otelo, Vasco Gonçalves e outros que levaram a cabo a madrugada libertadora faltou a coragem de pegar nesse extenso polvo e colocá-los a responder pelos crimes praticados. Um por um, crime por crime teriam que responder por eles e serem castigados por tal. Por cada criança da casa pia que espera ainda lhe seja feita justiça, por cada sem-abrigo que dorme encostado ao centro cultural de Belém, por cada criança que morre nas urgências dos hospitais, por cada homem que morre em estradas vitimado pela incúria de quem a projectou. Por cada escola do interior sem aquecimento, por cada vítima de violação que viu o seu algoz ser absolvido, por cada cidadão burlado impunemente pelas sanguessugas bancárias, por cada criança que se agarra à saia da mãe implorando por leite, por cada mãe cujo salário mínimo não chega para comprar leite para o filho, Por cada jovem que tem de deixar os estudos porque os pais não conseguem aguentar sem que ele trabalhe.
Não haverá Abril enquanto não responderem pelos seus crimes. E o povo deve ter isso como missão, cumprir Abril será enfim cumprir os desígnios de todo um povo e então sim a nação terá fundado os seus pilares rumo ao século que vive mas no qual ainda não entrou.

 
Autor
jaber
Autor
 
Texto
Data
Leituras
898
Favoritos
0
Licença
Esta obra está protegida pela licença Creative Commons
8 pontos
8
0
0
Os comentários são de propriedade de seus respectivos autores. Não somos responsáveis pelo seu conteúdo.

Enviado por Tópico
Carolina
Publicado: 25/04/2010 21:16  Atualizado: 25/04/2010 21:17
Membro de honra
Usuário desde: 04/07/2007
Localidade: Porto
Mensagens: 3422
 Re: Abril por cumprir
esta é grande, mas abril merece, ó se merece, apesar da liberdade ter sido "transformada" em corrupção, facilitismos, preguiça e outras coisas...
alguma coisa boa aconteceu mas muito ficou por fazer...e muito dificilmente acontecerá.

um beijo


Enviado por Tópico
Henricabilio
Publicado: 25/04/2010 21:28  Atualizado: 25/04/2010 21:28
Colaborador
Usuário desde: 02/04/2009
Localidade: Caldas da Rainha - Portugal
Mensagens: 6963
 Re: Abril por cumprir
Muito bem!
Liberdade é uma palavra gravemente ferida e há muito tempo nos cuidados intensivos, um pouco (ou muito) por toda a parte.

Um abraçooo!
Abilio




Enviado por Tópico
luciusantonius
Publicado: 25/04/2010 22:35  Atualizado: 25/04/2010 22:35
Colaborador
Usuário desde: 01/09/2008
Localidade:
Mensagens: 669
 Re: Abril por cumprir
Autentico tratado de denúncia de uma sociedade corroída de doença que corre o risco de se tornar letal. Realçaria o visco da ganância que é o mesmo que dizer do deus dinheiro, esse que comanda a vida de todos. O problema está no surgir ou não do Homem Novo – esse capaz de reduzir o dinheiro à mera condição de coisa útil nas relações entre os homens. Que convertesse em factor de Vergonha a busca despudorada do poder.

Aplaudo o seu Tratado

Um abraço
antonius

Enviado por Tópico
visitante
Publicado: 25/04/2010 22:40  Atualizado: 25/04/2010 22:40
 Re: Abril por cumprir
Escrevemos a mesma dor com palavras diferentes.

Gostaria de dizer que continuo a acreditar no meu Abril, mas mentiria como mentem todos os dias os nossos governantes.

Abraço Jaber

JLL