Por mais estranho, incrível, que pareça
a próxima história que vos trago
é caso curioso, do carago,
que nem sequer vos passa pela cabeça.
Um cego e o seu amigo Edmundo,
que nunca fora muito de ir à escola,
viviam de biscates, de esmola,
perdidos nas agruras deste mundo.
Humildes, mão aberta à multidão,
andavam pelas ruas de Lisboa,
assim como quem canta ou apregoa:
Dê cá uma moeda, um tostão.
A vida era um infame purgatório,
um forte pesadelo, um berbicacho.
Passavam, rua abaixo rua acima,
o dia no difícil peditório.
Que raio de destino assim maldito,
pois tudo o que ganhavam por jornada
foi sempre muito pouco quase nada,
mal dava para a sopa e o copito.
Queixava-se o ceguinho ao Edmundo:
Assim não vamos lá, meu caro amigo.
Não vou nunca deixar de ser mendigo
e tu não passarás dum vagabundo.
Responde o Edmundo pensativo:
Eu tenho uma ideia promissora,
um pouco arriscada, sim senhora,
mas tem também um lado positivo.
Iríamos ganhar muito dinheiro,
sucesso, muita fama e mulheres.
É fácil, para tal basta quereres
tornar-te num intrépido toureiro.
Toureiro!?! Perguntou-lhe o ceguinho,
incrédulo, sem querer acreditar.
Sou cego, como podes tu pensar
em tão grande disparate. Maluquinho!
A sério! retorquiu o Edmundo.
Tu sabes que eu sou mesmo teu amigo,
escuta até ao fim o que eu te digo
e diz-me o que achas lá no fundo.
Tu entras na arena normalmente,
eu sigo logo atrás e sempre atento
ao mínimo barulho ou movimento
do touro que nos olha lá à frente.
Depois se ele vier pela direita,
eu dou-te um encontrão para a esquerda.
No caso de ele vir pela esquerda,
eu dou-te um encontrão para a direita.
O cego magicou nesta proposta
tentando imaginar-se na arena.
Por certo valeria bem a pena
e logo deu um sim como resposta.
Chegou enfim o dia da estreia
do mais novo toureiro nacional,
um caso nunca visto, irracional
e no Campo Pequeno a casa cheia.
Entrou meio a tremer, tão inseguro,
o cego no seu traje reluzente.
Os braços esticados para a frente
abraçam o vazio, o escuro.
Seguia o Edmundo atrás do cego,
vestido também ele a rigor,
suava sob o sol abrasador,
a mente num total desassossego.
Seriam mais de mil e muitas almas
de pé em aplauso nas bancadas,
surpresas, direi mesmo admiradas,
brindavam o ceguinho com as palmas.
Aos poucos o barulho abrandou,
calaram-se as gargantas do povinho.
No centro o Edmundo e o ceguinho
quando o altifalante anunciou:
O touro que começa esta tourada
chegou vindo da Casa dos Camilos
e pesa uns seiscentos e dez quilos.
Um bom representante da manada.
Seiscentos e dez quilos!?! C’um catano!
pensou o Edmundo com surpresa.
Na mais certa atitude de defesa
fugiu, deixando o cego no engano.
Sem nada suspeitar, assim sozinho,
avança o toureiro, pela praça,
por certo ao encontro da desgraça
talvez da própria morte, coitadinho.
O touro, lá ao fundo, resfolega,
esfrega os seus cascos na poeira.
E sem se aperceber da ratoeira
avança o ceguinho para a refrega.
Abana a muleta avermelhada
chamando pelo toiro, esganiçado:
Hei toiro! Oh! Cabresto desgraçado.
Avança às escuras sem ver nada.
O touro já arrancou como uma seta,
parece um comboio TGV,
atira-se ao toureiro que não vê,
seguindo a direito, em linha recta.
O cego até voou com a pancada,
caindo lá ao longe amarfanhado.
Partiu quatro costelas e, coitado,
ficou com uma perna perfurada.
Correram os toureiros em redor
tentando levantá-lo com cuidado.
Um médico à pressa foi chamado,
chegou também ao pé o desertor.
Ao ver o pobre cego moribundo
gritavam as pessoas por ajuda:
Alguém que o socorra, o acuda.
Chorava arrependido o Edmundo.
Depois no hospital foi operado,
durante duas horas, de emergência.
Devido ao alto grau de violência
ficou por mais dois meses internado.
À sua cabeceira, o Edmundo
passou dias e dias de tristeza.
Ninguém sabia ainda com certeza
o fim daquele coma tão profundo.
Um dia o ceguinho acordou
sentiu o Edmundo ao seu lado
já todo sorridente, emocionado,
pensando: o pesadelo acabou.
Então, meu caro amigo, estás melhor?
pergunta o Edmundo envergonhado.
Sabia que, apesar de acordado,
o cego deveria sentir dor.
Tentando levantar-se, o ceguinho
virou-se para o amigo a espumar,
o ódio estampado no falar
e disse em voz fraca, bem baixinho:
Estou desiludido e é contigo!
Caralho, francamente ó Edmundo!
Nunca foi em qualquer lugar do mundo
encontrão que se desse a um amigo.