Era pequenino, num esvoaçar trôpego, sem asas que lhe sustentassem o peso, o pardal seguia rente ao chão, num misto de voo com corrida como uma avioneta que tenta ganhar balanço para descolagem mas nunca percorria mais que uns metros e depois extenuado ficava quieto no chão do caminho poeirento. Ás tantas tentou chegar-se para a berma para encontrar sombra nas mimosas floridas de Maio que lhe tornasse menos penosos os arremedos do periclitante esvoaçar. Cedo demais caíra do ninho, ou algum miúdo mais afoito lhe desfizera o lar para um momento de bravata no recreio da escola. À sombra das mimosas o pardal emitiu uns pios aflitos, num misto de chamamento e de lamento pela triste sorte. Eu nunca tinha entendido a necessidade de se destruir ninhos na primavera para contar em jeito de façanha aos colegas de travessuras. Tentei apanhar o pardal que ainda mais aflito se embrenhou pelo meio das mimosas num esvoaçar agora aterrorizado, que enfim parou rendido à sua sorte e ficou ali imóvel, só o papo mexia como se lhe faltasse o ar, apanhei-o e o coração parecia que lhe rompia as delicadas penas tal o ímpeto que sentia nos dedos que o seguravam.
Ao chegara a casa a minha mãe perguntou-me o que levava nas mãos fechadas em concha delicadamente sem apertar, só o suficiente para lhe fazer uma prisão assim na palma das minhas mãos. Respondi-lhe que era um pardal que tinha encontrado perdido, talvez caído do ninho.
- E que vais fazer com isso? Se ainda desse para uma arroz de passarinhos…! – responde a minha mãe deixando-me petrificado com a resposta.
- Tu nem penses em meter o pardal no arroz que eu nem sei o que faço… - o tabefe seguiu-se rápido à laia de resposta à minha observação.
- Não sabes o que fazes mas eu sei, vais apanhar a roupa no varal e arrumar o teu quarto seu preguiçoso que até agora ainda não fizeste nada.
Acabrunhado esgueirei-me pela porta dentro e na varanda meti o passarinho numa gaiola de uns canários que o meu pai tivera e que desapareceram num dia aziago, em que me esqueci de fechar a porta da gaiola levando uma sova que ainda hoje sinto onde me assenta os cós das calças, dada a preceito com colher de pau que naquele tempo ainda eram feitas de madeira. Com um conta gotas tentei dar de beber ao pardal que se recusava a abrir a boca, com uma pinça tentei enfiar-lhe bocadinhos de pão amolecidos em leite e ás tantas como ele se recusava a abrir o bico eu fazia-o á força tentando-lhe salvar a vida contra a vontade dele.
No dia seguinte era domingo e antes da missa encarreguei-me de lhe enfiar o pequeno-almoço utilizando os mesmos métodos de véspera. No fim de almoço fui até ao adro da igreja onde se juntavam os garotos…E as garotas que eram o meu passatempo favorito nas tardes de domingo, já que não se podia jogar à bola com os sapatos de verniz e a calça de terylene sob pena de o domingo acabar com um cossório de meia-noite. Estava eu perdido com os atributos precoces da Glória quando olhando para o relógio vi que era tarde para alimentar o meu protegido, dei a correr para casa ante a estupefacção dela e mal entrei fui directo é varanda.
O passarinho jazia no chão da gaiola, inerte, meti a mão, toquei-lhe com um dedo e ele rolou rígido para o outro lado como quem dorme e não quer ser acordado. Quando um pássaro nasce em liberdade nunca deixa que o domestiquem, vaticinara o velho Luís do alto da sua experiencia de vida quando passei com ele nas mãos em jeito de velório para o enterrar no jardim do prédio.
A liberdade é um bem imutável e o meu pardal preferiu morrer à fome a ver-se privado de esvoaçar, ainda que assustado pela liberdade precoce, ainda que sem saber sequer voar, mas queria esse direito, de morrer a tentar. Quando o pus na gaiola o pardal desistiu. Desculpa pardalinho.