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I - Duas faces (José Luiz da Luz)

Cintilam os mármores da potestade,
refletindo a prata em noite enluarada.
Reluzem-se faces ao dom da vaidade,
e dos lustres de cristal, de luz dourada.
Saciam-se palatos em pratos de ouro;
Exculpem-se faces ao dom da altivez.
Pairam astros no celeste miradouro,
quais pérolas das jóias da alta honradez.

Trono de ouro ou pó. Chama ou lama o brasão.
Carros blindados adornados de alteza,
par em par com carrinhos de papelão,
traçados pela convulsão da pobreza.

Por que vêm sem pão? Galgam quase sem nome.
Por que pouco teto se é imenso o espaço?
Fitam o céu com os pés no pó, com fome.
- Onde o céu começa? Onde finda o embaço?
Dois ventres e duas civilizações:
O que está extasiado, e o que está anemiado.
Que come o pão, e o que o sorve dos lixões.
Que ri convulso, e o que chora aculeado.

A furiosa chuva nas mansões entoa,
canções embevecidas sobre os vitrais.
Ao pobre casebre, é serpente que ecoa,
aos pingos rotos de venenos mortais.

II Águia dos lixões

Albatroz! Planas sobre a dança do mar,
vendo estrelas nas ardentias douradas.
Ave de rapina! À espreita a disputar,
com homens, nos lixões, as sobras jogadas.

Negra ave de rapina! Águia dos lixões...
Que resvala as nuvens em tristes visões.
O fogo dos teus olhos vê fome e dor,
Às névoas de moscas! Meu Deus, quanto horror!...

Pousa, sobre o pútrido elo das loucuras.
Ladeando pés e patas, em infectas cenas.
Ventres famintos, só querem pães, apenas,
no turbilhão sob o odor das amarguras.

III – Fome

Fome não tem cor, mas tem face de horror!
Que importa a raça, terra de qual pendor.
É o vácuo do sangue, o inverso da glória.
Fenecem às bordas sombrias da história.
Olhai! que a morte é divina, debruçados.
Filhos sem sonhos e hálitos anemiados.
Animais, homens e pratos de amarguras,
disputam-se qual sonâmbulas figuras.

Há mártires da fome no mundo inteiro,
quais negros escravos em chão brasileiro.
Há outras peles, raças mais, jazem ao chão:
Bantos, brancos, negros, tantos, sem razão.
Na África há ecos de dor, que fremem.
No liame do preconceito à fome gemem.
Ainda escravos, sem açoite, sem mordaça,
de ocas vísceras jogados à fumaça.

Na Índia o Taj Mahal bilha às peles morenas;
E o ahimsa de Ghandhi, às armas serenas;
O amor de Teresa em Calcutá faminta,
mãe dos filhos de esperança quase extinta.
Negro Haiti! Rubro ao sangue em grotescas cenas,
decepados homens choram cantilenas.
Negras mães, lívidos filhos espantados,
sem o cheiro dos pães, têm ventres mirrados.

Beijam os capitais, insanos cometas,
como roçam nas luzes as borboletas.
Mas nas sombras dos obeliscos há prantos,
de fome e dor, na cadência dos espantos.
Na Luz de Eiffel, Strip, Burj Al Arab, há clames,
dos assolados pelas cifras infames.
Ri-se, com a irônica valsa estridente...
de pungida lira à boca da serpente.

IV - Calcam e juntam dos lixões

De excrementos e pútridos, a se banhar.
E caminhões de lixo a aspergir varejeiras.
Eu vi! Legiões humanas sobre as estrumeiras...
Eu vi! Com as moscas, horrendas, a chorar.

Seios poentos, os filhos sugam das mães;
Ventres pungidos de verminose morrendo;
Mãos juntam os recicláveis trocam por pães,
sob o escuro suor de pó escorrendo.
O doente arqueia,o ancião cambaleia.
Outros de aleijões, que o verme no chão tenteia.
Outros a drogas e álcool, algemam a vida,
e enlouquecem na mísera cena sofrida.

Erguem-se livres p´ra morrer, vivendo à toa.
Com a peste no passo, e os filhos nos braços.
com lágrima que escoa da alma que ressoa.
A correntes, algemas, espectros sem aços.

Paira a ave de rapina sobre tanta dor,
dos filhos de Deus, com os animais em par.
Por que não levas, ave ligeira, em teu alar,
ao longe, às negras asas, tanta fome e horror?

V – Orar

Olha-se o passado, se fez tudo quase errado,
e o tempo passou.
Mas no presente, se vê o amor quase ausente,
e pouco mudou.
Neste altar escuro, que uma luz no futuro,
possa iluminar.
De atadas mãos, que todos sejamos irmãos,
e juntos, amar.
Que o amor seja fecundo, na alma do mundo,
possa germinar.
Mas enquanto isso não vem, o que nos convém,
é apenas orar.

 
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luzeluz
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