É uma contradição: a peixeira é um bom bife. Se não fosse ela o meu jejum era perpetuado.
Desde que reatamos que já lá vão mais de duas dúzias de… noites a decifrar o olhar maluco da lua.
A coisa parece ficar séria.
Ela está com ideias em me levar ao altar. Eu já lhe disse que sofro de vertigens e que, deus está de olho em mim desde que a Andreia se pôs a mexer quando soube que afinal os meus poemas tinham outros destinatários.
Mas a vida soube-me dizer: vai em frente, meu irmão! A Licas a bem dizer tirou-me da merda, trouxe-me de novo ao romantismo. Eu já não sabia o que era fazer amor à sombra da bananeira, sem ter que me preocupar nadinha, nem sequer em preencher a folha do IRS. Ela a fazer tudinho, inclusive a merenda.
Mas que ninguém se deixe ir em ilusões, pois a qualquer momento pode vir por aí um vento que nos muda a direcção numa velocidade de galgo de competição.
A Licas tem o negócio que herdou da mãe, que coitada, está em casa com a clavícula num oito. Não se pode mexer, nem num pentelho, sequer. A primeira vez que fui lá a casa, a dona Miquinhas gostou de mim e teve a gentileza de dizer que era um bom caralho.
Depois riu-se com aqueles dentes que raramente vêem pasta dos dentes. Mas é boa criatura, a velha, tanto que até me passou as chaves da carrinha para ser eu próprio o motorista.
E os dias foram assim: eu e a Licas a cobrir várias freguesias na venda de peixe. Pescada, salmão, fanecas, robalos, sardinhas, carapaus, etc, enfim, aviávamos de tudo que vinha do mar.
As notícias de que o país estava-se a afundar já não me diziam respeito, afinal de contas a Licas tinha e tem umas boas bóias.
E, de vez em quando, lá tinha eu de fingir que naufragava. A vida ia boa, com a mesa cheia de comida e vinho até dar com pau. Só quando a Dona Miquinhas me começou a tratar por genro é que as coisas começaram a ganhar um paladar diferente, a sentir um aperto de ambos os lados.
Da Licas e da mãe dela, que queriam à força que a boda se fizesse nos entretantos. Fui adiando decisões, embora participando naquela treta de aconselhamentos matrimoniais, que me davam cá uma neura nos perlimpimpins.
Por causa das minhas indecisões o meu assobio começou a não se fazer cantar. Eu até gostava da Licas, principalmente entre as 21 e as 23 horas, que era quando estávamos agarradinhos, a ouvir Wager, sem aquele cheiro a mexilhão mas, os meus quarenta e três anos ainda me diziam que ainda é cedo para me deitar todas as noites com a mesma. Fui buscar coragem não sei onde e, depois de uma bruta mariscada lá na casa dela, tive de lhe dizer: Licas, as coisas não são bem assim!
A reacção dela foi imediata: levei com um lagostim na moleirinha que me lixei por quinze dias úteis. Antes isso do que levar um pontapé nos entrecostos. Lá me aguentei os dias seguintes sem comer o bacalhauzinho a que estava já habituado.
E fiz-me a outros negócios de carnes.
Na minha cabeça só tinha a voz da velha, quando à mesa me dizia: ai de ti que faças mal à minha menina! Eu achava engraçado ela chamar de menina a uma mulher de noventa e tais quilos, fora aqueles que eu ajudei a derreter, claro.
Cheguei a ter pesadelos e a acordar de noite, a imaginar a velha de camisa de dormir, sem nada por debaixo, a caminhar na minha direcção, com aquele sorriso de levar um lutador de sumo ao tapete em fracções de segundos.
Quais comprimidos, quais livros do José Ilídio Torres para adormecer. Nicles! Sentia-me possuído por aquela velha que, quase de certeza me rogou uma praga bem rogada.
Tentei um médico mas não adiantou. O caso não era clínico, era sim psicótico. Pois em tudo que olhava só via a puta da velha, a sorrir. Tinha de tirar esta imagem da cabeça.
Experimentei várias bruxas, inclusive a Paulina que me enfeitiçou durante o verão, mas não deu em nada. A velha, a velha, a velha.
Uma verdadeira alucinação os meus pensamentos que, à custa disso, há dias que não sabia o que era uma erecção.
Tentei seguir vidinha sem grandes alaridos, sem grandes curvagens, sem grandes arremessos. E lentamente voltei à normalidade, embora com uma espinha atravessada na garganta: o estar teso como um carapau. Dias depois, estando eu no meu sossego medieval, recebi uma chamada.
A velha sucumbira! Fora atacada por uma virose à conta de um bife mal passado.
Não aguentou os fármacos e morreu com aquele sorriso que nunca conhecera a vida.
Podem não acreditar mas fiquei melhor um bom pedaço. Parecia que respirava flores em vez de bidés mal lavados. Fui para a rua festejar com uma garrafa em cada mão e deixar-me de lamentos. A Licas ligou-me a contar o que eu já sabia, disse-lhe, sinto muito e olha que vou rezar pela tua querida mãezinha.
Desliguei e continuei na minha felicidade.
Passei por uma montra que dizia: precisa-se de motorista. Ora, nem de propósito, como tinha uma certa experiência fui lá oferecer os meus serviços. Atendeu-me uma velha
muito sorridente. Sentada numa cadeira de rodas. E a seu lado, uma jovem a querer saltar a cerca. Aceitei os 600 euros que ela me ofereceu e ainda a possibilidade de sacar a filha para os meus braços que, numa troca cruzada de olhares, parecia mesmo essa a intenção da velha, e por jeitos, agradava à morena a ideia de ser comida por mim.
Os dias seguintes foram longos e intermináveis.
A velha tivera há uns meses atrás uma trombose mas desenrascava-se bem lá na sua cadeirinha manual.
Eu ia fazer umas entregas de pão com chouriço caseiro pelas portas mais a Judite e, à noite, depois dela deitar a mãe e dar-lhe a papinha na cama, amávamos como dois anormais.
Tudo lá no alto.
Eu bem tinha dito um dia que a felicidade é um vaivém do caraças. Comida na mesa, roupinha lavada, quem é que não quer vida assim? A Judite soube mexer comigo e eu soube mexer nela, mas sem estragar muito. Pois eu no fundo sabia que, mais tarde ou mais cedo, podia dar para outros que viessem a seguir.
É tão bom abrir a janela e saber que a vida corre numa sumptuosidade tal que parece que trás as mamas de fora, a vida. Finalmente sabia o que era ter meia dúzia de trocos no bolso e uma barriga à chefe de família.
Um dia de manhã deu-se o pior, numa curva não fui a tempo e a carrinha só parou no outro lado da estrada. Graças a deus que eu fiquei bem, agora a Judite, graças a não sei quem, ficou toda desmanchada, desencolatrada. Dois dias no hospital e voltou toda engessada.
Tive esses dois dias na cama, completamente coberto pelos cobertores, a fingir uma meningite para não ter que limpar o cu à velha.
Dois dias foram suficientes para que um cheiro nauseabundo pairasse por todo o prédio e os inquilinos começassem a reclamar com insultos sofisticados.
A Judite estava tola.
Eu já tinha ultrapassado essa fase,
estava numa loucura mais estilo neo-realística,
a escrever poemas em cima de poemas para não ter de esganar ninguém.
- Escuta, Judite, sou apenas motorista e não tenho de andar cá a mudar fraldas a ninguém, muito menos a velhas.
- Mas é minha mãe, porra, não é uma pessoa qualquer, é a tua futura sogra!
Calmamente, vim à janela, olhei o céu, respirei, fui buscar ar aos colhões, voltei a olhar o céu e vi um anjo com ar de tinhoso a sorrir para mim.
E noutra janela esta uma velha filada em mim, com um olhar atractivo.
Não há nada a fazer. Por muito que tente corrigir o destino, o meu é só um: só me sai velhas!