Crónicas : 

O sol por uma fresta.

 

O Manuel levantava-se com os primeiros raios de sol que escorriam pelas frestas da persiana do T1 que habitava com a Madalena e seus dois filhos. Ia para a casa de banho onde fazia a barba e enganava a sujidade com umas borrifadelas de água gelada nos sovacos e nas virilhas que o gás para o esquentador só com o 13º se conseguia, o resto do ano aquecia-se a água para os banhos e de manhã não havia tempo nem pachorra para isso.
O Manuel depois de acordar a mulher marchava porta fora com o estômago enganado por uma bucha de pão seco, entalado por um chá de cidreira, e juntava-se à turba humana que ia saindo dos prédios vizinhos e lhe faziam companhia silenciosa, só interrompida pelas saudações da praxe. Com as mãos enfiadas nos bolsos e as golas levantadas ao vento cortante que zurzia as orelhas e a dignidade, aquela multidão ia engrossando ao mesmo tempo que as distancias das fábricas iam encurtando, depois desfaziam-se cada um seguindo caminho para a fábrica de destino. Depois o Manuel e os companheiros entravam nas secções barulhentas de máquinas em movimento cadente e monótono num “trum-trum, trum-trum” que ecoava no cérebro desde que se lembrava ainda miúdo quando acompanhava o pai as primeiras vezes para aprender o oficio.
O Manuel não conheceu a internet, só a conheceu de ouvir falar. O Manuel não conheceu os netos exaurido por uma vida sem sentido. O Manuel não amou, casou porque era tradição. O Manuel não deixou herança, tem uma lápide com o nome gravado numa placa de granito polido. O Manuel não tem idade, tem os anos que os filhos se lembram: “uns sessenta e tais”! O Manuel não sabe se foi infeliz, simplesmente porque nunca conheceu a felicidade. O Manuel não viveu, viu viver no caminho que fazia de casa para a fábrica e vice-versa.
O sol sempre nasceu para o Manuel pelas frestas da janela. Ainda lhe incomodam o sono com outros “truns-truns” sempre que vem um outro Manuel para o seu lado e lhe cerram o caixão ali perto.
O Manuel podia ser o José ou o António, mas era o Manuel porque a lápide assim diz.
 
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jaber
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Enviado por Tópico
arfemo
Publicado: 14/04/2010 21:55  Atualizado: 14/04/2010 21:55
Colaborador
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 Re: O sol por uma fresta.
Zé Ninguém lhe chama o povo cruelmente ou por gostar de desenhar autoretratos...

bela crónica sobre os inúmeros manuéis deste país!

abraço
arfemo

Enviado por Tópico
jluis
Publicado: 14/04/2010 22:27  Atualizado: 14/04/2010 22:27
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 Re: O sol por uma fresta.
Excelente; como pode ser, paradoxalmente, de excelência a vida, até, dos simples...
Não costumo, mas arrepiei!
Um abraço
JL

Enviado por Tópico
visitante
Publicado: 14/04/2010 23:05  Atualizado: 14/04/2010 23:05
 Re: O sol por uma fresta.
Breve e excelente biografia de muitas vidas.
Podia ser a minha.
abraço
nuno

Enviado por Tópico
sampaiorego
Publicado: 14/04/2010 23:59  Atualizado: 14/04/2010 23:59
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 Re: O sol por uma fresta.
excelente.

a leitura trás momentos de grande conforto

abraço

sampaio(r)ego

Enviado por Tópico
visitante
Publicado: 15/04/2010 00:14  Atualizado: 15/04/2010 00:14
 Re: O sol por uma fresta.
Manuel, que podia ser José, António. assim como ele, tantos quantos sabemos que existiram do cartão de ponto, à lápide. mas desconhecidos da vida.
(das suas andanças, bons subsídios)

fraterno abraço, xará

Enviado por Tópico
Alexis
Publicado: 15/04/2010 13:47  Atualizado: 15/04/2010 13:47
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 Re: O sol por uma fresta. para jaber
o manuel foi um morto-vivo.apenas uma pequena peça de uma terrível máquina...

beijo
alex