- álvaro de campos -
. façam de conta que eu não estive cá .
"Arre, estou farto de semideuses! Onde é que há gente no mundo? Então sou só eu que é vil e erróneo nesta terra?"
álvaro de campos
sabes, álvaro, as poucas pessoas que fui conhecendo, desapareceram. estive com elas umas poucas de vezes, partilhamos pensamentos, assistimos a realidades, com algumas dividi uma cerveja, um cigarro, com outras dancei, com poucas vi nascer o sol e a outras tantas abracei. algumas sabem de mim por terceiros, falam de mim às vezes, imagino que aconteça numa dessas, tantas, conversas de domingo à tarde, durante uma churrascada com os amigos. voltei a ver algumas, lembro-me frequentemente dos reencontros, sempre apressados, sempre de cabeça baixa, boca no peito, à espera que eu não os reconheça. nunca esqueci um rosto. nunca. o meu mal, meu curioso mal, álvaro, é lembrar-me. lembrar-me repetidamente de todos, os seus gestos, as suas expressões, momentos, restos de conversas, pedaços de silêncios, imagens. tudo me passa agora apressadamente pela cabeça. quem me dera não ter saudades, de nenhuma destas memórias. muitas destas pessoas, juro-te, nunca me importei de ter perdido, na verdade pouco acrescentaram à minha vida. mas outras - a célia, a catarina, a marta, o zé tó, o pedro, o ezequiel- construiram-na. estavam lá quando caí dentro da poça e aprendi a nadar, riam-se quando corria com os joelhos para dentro, trocavam tazos comigo, pagava-lhes pacotes de batatas fritas com os trocos da minha avó, jogavamos às escondidas antes do terço ou enquanto esperavamos pelo autocarro. nada sei deles, alguns de certo já casaram, alguns já devem ter filhos, a célia já deve ser enfermeira, o zé tó já deve ser cinturão negro no judo, o pedro já tem um jipe, o ezequiel foi para o estrangeiro, a catarina suponho que seja cozinheira, a marta já tem umas sapatilhas da nike. imagino que falem de mim às vezes, ao folhear um qualquer álbum de fotografias ou quando voltam a lugares onde estivemos juntos. muitas vezes me apeteceu abraçá-los, dizer-lhes que agora entendo porque não pode uma toupeira voar, que a minha imaginação se lhe dá asas, só as dá nos meus olhos. dizer-lhes que acredito. agora podemos dar a volta à aldeia ao pé-coxinho, podemos construir uma jangada com ramos de giesta, podemos fazer uma fisga e com ela matar lebres, podemos descobrir pegadas de dinossauro, nada nos impede, seremos sempre crianças enquanto estivermos vivos. é que sabes, álvaro, estou tão só.se aqui não estivesses, com quem iria eu chorar, a quem iria eu dizer estas memórias.