Com os olhos ainda marejados, o rosto inchado, uma sensação de indefinição, finalmente, levantei-me da cama e coloquei a foto na gaveta. Eram quase 11 horas e eu ainda não tivera ânimo de abrir as janelas e deixar a claridade entrar. Estava encolhida debaixo das cobertas, entregue ao sentimento que me assolava.
Em pleno maio, com certeza, um lindo dia brilhava lá fora. Ouvia vozes passando pela rua, mas me pareciam longínquas, como as pessoas todas pareciam estar muito longe de mim naquele momento. Um sentimento de sozinhidão me envolvia toda, eu jamais havia estado tão comigo mesma.
Liguei o gravador e coloquei a fita do Zanfir, não queria palavras, somente sons melodiosos que me causassem sensações indescritíveis. Fiquei ali, inerte, com o peito cheio de um imenso vazio. Um paradoxo incontestável.
Vinham-me lembranças embaralhadas, misturavam-se desejos não realizados e uma vontade preponderava: queria ir para o interior, ver a banda passar tocando coisas de amor. No interior, haveria de escrever do que sinto, que é o jeito de viver. Deixaria de lado as tentativas incessantes de estabilidade e poderia entregar-me à delícia de viver com pouco, simplesmente porque muito há aqui dentro. Imaginava um chão de terra, onde eu plantaria minha horta e dela cuidaria, entre uma página e outra. Sentiria uma paz que atravessaria o papel e migraria para grandes distâncias.
Na pacatez de minha alma, o silêncio daquela foto era-me presente. Um milagre de comunicação, de deslocamento no tempo e espaço. Entrava e saía dela, movida pelo sentir. Trazia-o de volta, meu companheiro risonho, que me invadia com beleza e vida, que me abraçava de um jeito só seu. Meu fio tênue entre a fraternidade e maternidade, minha certeza da comunhão que transcende os rótulos, minha experiência profunda de amplidão de ser.
Vi, com ele, o tempo transformar-se dentro de mim. Ele chega quando podemos ver, a cronologia é didática, apenas. Um deus Cronos paralelo coexiste e suplanta os dias e noites consecutivos. Pensamentos e lembranças ocupam as rédeas do tempo.
O relógio já marca 13 horas, mas eu continuo na foto, que, embora dentro da gaveta, mantém-se à frente dos meus olhos, nas minhas mãos. Olho para ele e me pego sentindo-o num abraço firme que me invade de ternura. Preciso caminhar neste tempo, nele preencho o imenso vazio da concretude. Crio uma atmosfera que me permite viver fisicamente, através da remoção dos limites têmporo-espaciais. Mantenho-me respirando e movimento-me entre inspirações e expirações. Sou-me como bem quero. Trago comigo todos os alfarrábios que me sustentam de pé, e todos os toques que me trouxeram até aqui.
Resolvo abrir novamente a gaveta, desta vez arrasto a cadeira e sento-me de frente à ela. São muitas fotos, umas por cima das outras, mas ele se destaca , meus olhos só o vêem como figura, nada mais consegue estar. Revolvo, carinhosamente, aquele monte de retratos, com o olhar magnetizado nele, retiro-o dali, fecho a gaveta.
Levanto-me, abro a janela, deixo o sol entrar. Procuro um porta-retratos, coloco, cuidadosamente, a fotografia, afasto os meus escritos que estão sobre a mesa e, no centro deles, deposito o meu amor.
Lila Marques.