Somos todos uns impuros.
A pureza deixou-nos aqui a navegar, cada um para o seu lado, a ver quem peca mais.
O pecado é tão certo quanto os pássaros no céu. Pecamos porque é bom saber que depois seremos perdoados.
No fundo julgamos que deus anda ocupado em outras tarefas.
Há quem peque por não pecar e há quem peque impecavelmente.
As sextas-feiras são minhas, a helena sabe disso. É quando desarmo as asas e saio a voar para a noite e sei que, aqui ou ali, o programa promete. Boto gel no cabelo, puxo-o para trás a modos de não deixar cair nenhum dos poucos cabelos que restam, cuspo fogo pelas narinas e lá vou eu.
Desta vez o destino é Lisboa, que cintila como pirilampos acesos, não mágicos, que esses custam dinheiro. No Zacarias há sempre rock à sexta e, é bonito ver a rapaziada às cabeçadas uns nos outros. À vigésima cerveja envolvo-me lá para o meio, meto-me em despesas e depois vem os gastos em curativos.
A mesinha do canto é a da malta, conhecida pela malta da grade. As conversas iniciais situam-se entre Teixeira de Pascoaes e Almada Negreiros, seguindo por caminhos metafísicos, curvando para futebol e desaguando em gajas.
Aqui toda a gente tem poder de argumentação. Incluindo eu próprio que, num silêncio pouco recomendado, catrapiscava a empregada de balcão. A Teresinha separou-se há três dias e anda desconsoladinha da vida.
Disse-lhe que isso não vai lá com remédios mas ela não acredita, ou então, fez de conta não perceber a deixa. Tenho de me controlar para não esbarrar em caminhos sem volta, ou, se o ex dela me topa, estou literalmente fodido. O gajo pratica karaté e eu não pretendo ser makyuara de ninguém. Além de que, fiz a promessa de me tornar puro, purinho da silva.
O Chico Zé entrou, e eu, tinha ali motivos para ligar a dois ciganos e dar-lhe cabo da espinha. O gajo anda para aí a dizer coisas a meu respeito. Mas contive-me, inclusive paguei-lhe um copo para resolver as coisas a bem.
Ele aceitou e brindamos, mas à distância de duas mesas um do outro. Valeu a intenção.
Parecendo que não, mas só este gesto de lhe perdoar, tornou-me mais leve. Só a cervejinha fazia contra-peso, caso contrário, voava.
Começava agora a entender as palavras bíblicas que me deixaram no vidro da frente do meu Corsa: «Pratica o Bem que serás recompensado».
Os Enlatados começaram a tocar. A bombar forte e feio com as guitarras feitas vacas loucas. O primeiro tema foi de arromba, um género de tributo aos Motorhead.
A malta vibrou e, de tanto vibrar, acabei levando com uma sapatilha da Puma na cabeça.
Vi quem foi o gajo, aproximei-me com a lentidão do Bruce Lee, a perspicácia do Trinitá, o meu pescoço já dava estalidos e, quando se pensava que ia dar bronca, num gesto só, mostrei-lhe que estava em peace em love. «Sim senhor», comentaram umas garinas que, nos seus risinhos a fugir para tons agudos, desafiavam-me para outras lutas.
Voltei para a mesa do canto, a espuma era notória na boca dos meus parceiros, pareciam ter bebido Sonasol. Só a Teresinha é que me tirava do sério, da minha crescente religiosidade, pois ela, no conceito de motociclista, é, digamos, uma mota pesada.
Só na parte da frente tem dois materiais bélicos capazes de aniquilar qualquer homem de férteis imaginações.
Mas eu não podia pecar.
Havia prometido a mim mesmo que o jejum, a pureza, era para cumprir como deve ser. Não que eu pretenda ser um Dalai Lamico, cheio de paz espiritual até ao tutano, ao ponto de querer dar uma e faltar-me aquele rasgo.
Nada disso.
Apenas limpar-me por dentro.
Pois toda vida pequei e esta era a Hora de encarar a vida mais solenemente.
Mas a Teresinha…xau, virava-me o eixo ao contrário e lá tinha eu de deitar-lhe uns olhinhos desnaturados.
Ela percebeu aquele meu olhar número sete, que só as mulheres com vontades são capazes de traduzir e, num aceno ao de leve, indicou-me o quarto.
Eu não podia, iria quebrar a regra.
Bebi um whisky de uma assentada e o meu sangue fez um estilhaço à Luciano Pavarotti. Deixei-me ir pela intuição e fui.
Pelas escadas comecei a pensar em pombinhas, nos filmes do Noddy, no puzzle de mil peças que tenho para concluir, para desviar os maus pensamentos. Entrei no quarto e ela estava nua sobre a cama, como eu previra.
Ainda por cima, Cristo na parede, olhando-me com cinco mil facas nos olhos. Como quem: se pecas estás lixado comigo!
Mas, ao sentir os chamamentos da Teresinha, vi que ela queria ser castigada como gente grande. Ainda cheguei a virar costas, a dizer-me não, não, não, mas, a safadinha, para que eu não resistisse à tentação, pôs Lionel Richie a tocar no aparelho.
E eu, decididamente, contra os princípios dessa noite, não lhe perdoei. E você, perdoava?
15 minutos depois, a luz foi-se abaixo mas, por incrível que pareça, ainda continuava a ouvir o Lionel Richie a cantar, num tom ainda mais doce. Achei bué de estranho, pois, como é que o aparelho dava sem energia?
Pensei: isto cheira-me a esturro, caralho! Dei um pulo da cama, vesti as minhas ceroulas azuis-celeste e fui dar com um tipo que estava dentro do armário, que era quem estava a cantar.
Afinal a cabra enganou-me! Estava lá um preto a espreitar-nos. Um cliente voiyer.
Um pretalhudo com rastas quase até ao cu, a massajar-se.
Sem qualquer receio, peguei nele à Van Damme pelos tarecos e atirei-o pela janela abaixo que, por azar, caiu em cima do meu lindo Corsa.
A Teresinha ficou tola porque, com esta coisa de atirar o gajo e ele entrar em coma, acabou por não receber o guito. Chamei-lhe quantos nomes havia, incluindo em castelhano. E basei, na esperança de encontrar o Flávio Silver dentro de mim, que nessa altura devia estar enfrascando imperiais numa aorta qualquer.
Porra!, e eu, de tão bom rapazinho que era, passei a adorar todos os demónios. Querem saber?, até hoje nunca mais consegui ouvir uma p* de uma música do Lionel Richie