Contos : 

SÓ PENSEI, MAS NÃO ERA!

 
Os passinhos miúdos não deixavam dúvidas: LAPORINÊ!

Difícil encontrar alguém com uma alcunha dessas. No dizer do pensador humanista, uma alcunha é a pedra mais pesada que o diabo pode atirar em alguém. Nasceu com isso, viveria assim eternamente. Mas os passinhos miúdos soluçavam sofregamente, marcando a passagem de quem trazia dentro de si, uma personalidade forte e marcante. A tenacidade demonstrada em tudo quanto se envolveu, garantia-lhe um respeito desmedido, embora a grande maioria de sua gente não o levasse em conta.

A carapinha esbranquiçada de hoje, estava longe de se encaixar na desalinhada cabeleira que sustentava sobre os ombros da juventude, quando assumia os palanques e destilava o vigor de seus discursos, no combate insistente aos desarranjos da política local.

“Zé Foiaseca” quando se via apertado gritava por seu nome: “vou chamar o Laporinê!” da mesma forma como invocava os nomes de Leonid Brezhnev, Fidel ou de San Thiago Dantas. Talvez esse espectro visionário de “Foiaseca” tivesse se originado mesmo das citações de Laporinê.

Prócer da antiga União Democrática Nacional, via nessas figuras nada mais que parasitas das relações internacionais, sobretudo o brasileiro San Thiago Dantas, com sua mania de Política Externa Independente. O verme petebista, alçou mão do programa iniciado no governo de Jânio Quadros e a partir dele, promoveu o reatamento de relações com a União Soviética. Reagiu acidamente contra a decisão dos Estados Unidos em sua pretensão de expulsar Cuba da OEA – Organização dos Estados Americanos. Essa prática não alinhada, fazia com que Laporinê se enrubescesse no fulgor de sua oratória, para gáudio de uma crescente multidão enfurecida, que desfilava com arrogância pelas ruas da cidade, querendo, a todo custo trucidar quem trouxesse um pequeno viés que fosse, de vermelhidão em seus princípios. Por certo que “Foiaseca” não entendia bem o delinear do discurso de seu ídolo e, através dele, projetava uma imagem portentosa das figuras referenciadas. Amava-os, de forma confusa, como amava a Laporinê.

Os reflexos dessa ingente proliferação na política nacional, com certeza trariam para a cidade, suas influências desastrosas. Já se observava ali, a presença das células encarregadas de disseminar a doutrina vermelha, e ninguém, a não ser ele, e de forma obtusa o folclórico “Foiaseca” eram capazes de identificar o risco que corriam. Laporinê denunciava do alto dos palanques, “Foiaseca” utilizava os imaginários microfones da rádio local, que não se furtava em simular um discurso inflamado de eterno prefeito: “Comunistas, safados”. “Foiaseca”, o doido, era o folclórico prefeito da cidade. No seu miolo mole, trazia o símbolo do que realmente representava a política daqueles dias e resfolegava sua verve, na confusão que fazia de todos os personagens.

O passo era recortado e miúdo, os olhos colados no chão. A decepção lhe trouxera a angústia de ter se iludido com a possibilidade de um dia se transformar em representante do povo. As derrotas sucessivas já o colocavam, quase, na mesma situação de “Zé Foiaseca”, mas ainda estava longe de representar uma incorporação do onírico da figura mais popular da cidade.

Resultado de uma incursão oficial, o termo se transformou em cidade, plantada no percurso que ia da capital colonial ao degredo. Herança indigente de uma cultura hedionda, trágica e desumana, o degredo era um portal que se tentava abrir na mata leste do Estado. Selvagens antropófagos e animais ferozes, precisavam ser dizimados para a entrada do homem civilizado. Cresceu a cidade. Cresceu no porte, no ideário, não. As práticas mais atrasadas dos costumes medievais, não saíram dela. Os pleitos eleitorais ainda eram decididos na troca do favor e da tutela. Dirigentes políticos inescrupulosos guardiões de uma moral falsa, não mediam esforços para afastar seus concorrentes. Classificado como primeiro provável sucessor da primeira vaga que surgisse no conselho municipal, Laporinê jogou nos ombros o surrado paletó da mais pura “casimira Aurora” na expectativa de que fosse assumir a vaga aberta com a morte do Conselheiro Murta. A tribuna teria nele, a desfibrilação de um Conselho vendido e subserviente. Foi dispensado sem muita delonga, à alegação de que a vaga não lhe pertencia.

A vontade era reverter a situação e gritar nos moldes de seu admirador: “vou chamar o ‘Foiaseca’”.

Não chamou ninguém. Subiu a rua Santo Antônio, recordando os tantos fatos em que se vira metido naqueles anos. A campanha pela não emancipação dos distritos mais distantes da sede, a luta pela derrubada das oligarquias que comandaram a política local no período anterior à redemocratização; nada disso lhe confortava. Vislumbrou a figura de “Zé Foiaseca”, vestido com seu surrado paletó acinzentado, o peito apinhado de condecorações, o rosto emoldurado pelos esverdeados óculos “ray-ban” e a bengala ferina com que se defendia dos achaques moleques dos citadinos. O discurso afiado, cheio de invocações a San Thiago, Fidel e do próprio Laporinê, e o riso sarcástico do diretor da emissora local, que inaugurava já, àquela época o microfone sem fio. Era o retrato fiel da cidade nua e crua. A rua lhe parecia infindável. As reminiscências lhe traziam à memória infalível, os mais ignominiosos momentos da sociedade local. Surge-lhe de imediato, a figura inconfundível de João da Vó. Criado por favor da avó de alguém, encenara, na presença de Laporinê uma das mais inusitadas cenas jamais imaginada por alguém.
A rua era um quarteirão, mas, era nele que se concentrava toda a influência e toda a representatividade da cidade. O melhor hotel, as melhores lojas, boa parte da rede bancária, casas de repasto e o respeitável salão de engraxates, freqüentado pelas mais altas patentes da sociedade local.

Enquanto lustrava seu legítimo cromo alemão, reluzente Mercury cupê, ano 1946, estaciona na entrada do Grande Hotel. Dele, desembarca imponente figura, trajando rigoroso e bem vincado terno, quando, João da Vó, metido no vistoso uniforme da recém criada SOVIM - Sociedade de Vigilância Municipal, se aproxima do veículo e resolve interceptá-lo. A SOVIM era a menina dos olhos de uma atual administração questionável. Criada sob aplausos, vinha com o objetivo de colaborar na verificação das posturas municipais, uma espécie de milícia branca, constituída de jovens adolescentes, recrutados, principalmente, sob a ótica da carência sócio-afetiva.

O Mercury reluz ao reflexo do feixe de luz que incandesce dos postes de iluminação. Ao seu lado, João da Vó observa, entre estupefato e indignado, o reluzir do veículo no contraste da placa de estacionamento proibido. Sem muito saber o que fazer, o arquétipo de miliciano caipira, retira um barulhento apito do bolso da túnica azul piscina e encena ensurdecedora atitude de abordagem, já em ritmo de empolgada beligerância. O grandalhão, recém saído do veículo, ao perceber a situação, volta à cena do crime:

- Mas, o que que é isso? Que zoeira é essa?

- O senhor não está vendo a placa do “não pode estacionar”? – retruca João da Vó, peito estufado e a voz recheada de uma entonação de autoridade.

- Sim, mas o que está havendo, porque esse escândalo todo? Que tipo de autoridade você é aqui na cidade? – pergunta o grandalhão do Mercury cupê, ano 1946.

Sem saber ao certo o que era, ou como responder, João da Vó perfilha-se diante do grandalhão e responde num ímpeto de orgulho:

- Já lhe respondo, senhor eu sou... sou um SOVIM!

- E o que que é um SOVIM?

- SOVIM, SOVIM, é um tipo de agente, um fiscal... quer dizer eu sou que nem um soldado! – falou forte no peito!

Num gesto carregado de hilário espanto, o grandalhão do Mercury cupê 1946, enfia a mão no bolso do paletó e responde ao João:
- Ah, é, pois então tá, você é que nem um soldado, né?! E eu, eu sou que nem um Capitão! Aqui está minha carteira.

Sem muito saber como agir, João da Vó baixou os olhos e saiu amuado, com sua moral entre as pernas.

Laporinê lembrou e riu, mais uma vez, riu. Estava agora no final da Rua Santo Antônio. Esqueceu da posse, esqueceu de “Foiaseca”, de Brezhnev e San Tiago, ele agora se via tal, como “que nem um Conselheiro Derrotado”; nova alcunha que impunha a si próprio; pedra mais pesada que o diabo pode atirar em alguém.

João da Vó, deixou os quadros da SOVIM, e foi pra São Paulo. Acentou praça na Força Pública, deixou de “ser que nem” e passou a ser de verdade um soldado.


Leia de Wagner M. Martins

FALA, FILHO DA MÃE!!! - Capa Paulo Vieira

UM BICHINHO À TOA. - Capa: Camilinho

Participação:

Livro OLHA PROCÊ VÊ! de Elias Rodrigues de Oliveira

No prelo:

UM INTRUSO NO QUINTAL

 
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wagner
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