Contos : 

O GOLPE DO GUINCHO, OU, JAPONÊS

 
As brumas do Rio Doce espalhavam uma sensação de resistência da região contra aquele clima abrasador da cidade. Nos momentos mais críticos, a temperatura subia às proximidades dos quarenta graus. Essa característica era um marco dali. Como sombras, os espectros começavam a se mover naquele ambiente inóspito e insalubre, enquanto o sol teimava por resistir, escondido por detrás da grande Ibituruna. Formado o comboio, cada um se ajeitou com suas mochilas, revisaram as armas e postaram-se em formação, à espera do comando de embarque. Numa pequena sacolinha de plástico transparente, a provisão de alimentos, almoço e janta para a viajem de volta: duas bananas, duas maçãs, dois pãezinhos recheados com mortadela, dois ovos cozidos, nada mais. Ninguém explicou a razão daquilo. Acossado ao final da fila de caminhões, seguia majestoso “baú” empanturrado de alimentos em conserva, ração alimentar, como chamavam, capazes de sustentar com muito mais vigor e por muito mais tempo que aquilo que ofereceram. Se era uma estratégia de treinamento, não avisaram, o certo é que, passadas poucas horas e pouquíssimos ainda não haviam devorado toda provisão que fora distribuída. Ia ser difícil. Varar, com tranqüilidade, os mais de quatrocentos quilômetros que nos separavam de Juiz de Fora.

A bruma se estendera e com o friozinho maroto, trouxe uma densa cerração, logo transformada numa chuvinha manhosa e persistente.

Japonês, o soldado 119, tinha um passo de ganso. Isso fazia com que sua presença se notasse a quilômetros de distância. De corpo presente, era alegre, bem falante, costumava ser irreverente. Tocava violão, o que já era alguma coisa e tomava umas pingas. Mas tinha coragem. Seu jeito simples não o afastava dos problemas que enfrentava. Não conseguiu vencer a fome. Indomado, não resistiu à minguada provisão e em meio do caminho reclamou da presença daquele “baú” lotado de provimentos, em troca de nada. Norminha, aquele capitão gordo, insosso e troncho, patético, feito o Sargento Garcia, era o dono do comando. Resolveu que resolveria o problema, autorizando a que se desse ao Japonês um saco daquela ração. Em sua intrepidez, Japonês rejeitou a proposta energicamente e condicionou o recebimento da comida à distribuição para todo o grupo.

Escalaram uma sentinela, de baioneta calada, para vigiar Japonês, confinado na carroceria de um dos caminhões, em estado de detenção, com formalização de ocorrência a ser cumprida no rigor do regulamento, quando chegasse ao quartel. A figura abatida do soldado 119 refletia o sentimento de cada um dos que mastigavam em seco, ante a miragem de polpudos torresmos espalhados sobre o balcão do posto de parada do comboio, mas que não tiveram a mesma coragem de enfrentar a situação. Sentado no fundo da carroceria, retirou o boné que lhe cobria a cabeça e estendeu o olhar indefinido em direção ao nada, sem que ninguém, de pronto, tivesse entendido sua angústia, não por não ter podido matar sua fome, mas porque não conseguiu convencer “aos comandantes”, que uma tropa inteira estava faminta e precisava ser alimentada. Esqueceram dele.

O fogo ardia e o milho espoucava no fundo da panela quando de repente, se deu o assalto. Munido de uma foice, “Guincho” acossou o pipoqueiro e levou todos os trocados que tinha no bolsão do jaleco. Ah. Isso demorou!
Japonês armou-se com uma barra de ferro e saiu em seu encalço, mas “Guincho” portava uma foice, e foice é coisa com que não se pode brincar.

Foi nessa condição que o encontrei inúmeros anos depois, mais de trinta, na encantadora cidade de Raul Soares. Mais gordo, bem disposto e com mechas de cabelo branco espalhadas pela cabeça rarefeita.

Falamos sobre o episódio da ração. Buscou na memória ainda, o lance da viagem que fizemos nos tempos da estrada de ferro. O descarrilamento na madrugada e a noite inusitada que vivenciamos, sem água, luz ou qualquer outra coisa que pudesse amenizar nossa angústia, no entremeio da serra de Coimbra e São Geraldo, cidades fincadas no centro da Mata Mineira. O nosso destino era a casa do Lourenço, na cidade de Ponte Nova. Lá comeríamos cenourinha amarela com frango caipira, feito no fogão de lenha. Lourenço foi expulso da corporação e morreu, de morte matada, pouco tempo depois. Alberone, o soldado 101, se embebedara e morreu também, ali mesmo, em Raul Soares, contou ele.

Com o advento da internet, descobrimos alguns remanescentes daquela viajem. Ahyas se fizera doutor e lecionava na universidade, Batista andava pelos lados de Angola. Quem lhe servira de escolta, no grande caminhão, fora Rabelo, o “Urutu”, negro estiloso de fina estampa e simpatia irrepreensível. Era amigo íntimo de Vilela com quem batucava sambas enredos no capacete. Morrera num acidente de trabalho. Velhas, belas e algumas tolas lembranças nos vieram. Rimos.

Não me contou sobre “Guincho”. Vim a saber por outros meios, depois de constatar o seu ódio mortal pela figura folclórica do lugar. Dizem por lá que é um atrativo para confusões. Comprou seus parcos condimentos para abastecer o carrinho de pipoca e quase que comete uma tragédia. Seu filho diz que ele é muito bravo; que quando vai assistir o jornal na televisão, o quarteirão inteiro fica sabendo, tamanho o escândalo que arranja no comentar dos assuntos. Mas ele era mesmo assim. No confronto com Norminha, falou alto, gesticulou, esbravejou e perdeu a parada. Igual passarinho na muda foi confinado na boleia do caminhão em troca de um protesto solitário em nome de seus colegas de farda. Talvez se tivesse uma barra de ferro, naquela época, tivesse enfrentado o todo poderoso Capitão egocêntrico e megalomaníaco que se sentia dono do mundo. Foi bom que não tivesse a barra de ferro. Norminha sumiu de nosso quotidiano, sem deixar saudades nenhuma, mas a feição solitária de Japonês continua presente, num demonstrativo de coragem e desprendimento, na defesa de suas convicções. Talvez “Guincho” não soubesse disso, pois, por um triz, escapou de sua fúria. O Japonês, de fato, continua bravo. Uma coisa porém é certa, me disse ele; hoje, não toca violão e não bebe nada, nem biotônico fontoura!


Leia de Wagner M. Martins

FALA, FILHO DA MÃE!!! - Capa Paulo Vieira

UM BICHINHO À TOA. - Capa: Camilinho

Participação:

Livro OLHA PROCÊ VÊ! de Elias Rodrigues de Oliveira

No prelo:

UM INTRUSO NO QUINTAL

Sabará, 19 de maio de 2009 – começo do inverno
 
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wagner
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