Textos : 

todos os números.

 


. façam de conta que eu não estive cá .








o meu avô era um homem magro, os olhos enterrados numa face oval, a boca rudimentar, lábios maciços, pele estranhamente branca. as mãos do meu avô eram macias, os dedos, sempre de unhas cortadas rentes, tinham as peles enrugadas, dedos magros e compridos, sempre despertos. lembro-me da última vez que o abracei, puxei-lhe o corpo contra o meu, boca a bater-lhe no ouvido,cabeça pousada no ombro, chorei, ainda não sabia que ele havia de morrer essa noite, mas chorei como quem despe silêncios e de silêncios ele sabia, que os paria todos os dias, de manhã à noite, sentado no escano, à espera. herdei do meu avô estes olhos, esta ânsia de estar dentro, o cheiro a deserto. havias de ter gostado de o conhecer -vestido com o terno preto, camisa cinza, sem gravata, cabelo grisalho despenteado do vento, sapatos de lona, livro debaixo do braço, mão direita no bolso, a esquerda a segurar a trela ao tempo. morreu cansado e só, junto à cómoda, as ceroulas brancas, o sangue na boca. o meu avô. havias de ter gostado de o conhecer - sentado na varanda, cassetes da amália, braços no colo, aos pés um perdigueiro velho, na boca fechado um mundo. nunca me falou de amor o meu avô, sabia dele pelo corpo da minha avó, "o resto são lérias", disse-me ele um dia à tarde depois de me ter contado a revolução e como sobreviveu sete dias com dois trigos e meia garrafa de jeropiga. hoje gostava de te falar de amor como quem fala do meu avô, ou do corpo da minha avó, ou das suas ceroulas brancas, ou do sangue na boca; dizer-te que amor é este onde, longe ou perto, estamos, que o coração é a única casa que temos.




 
Autor
Margarete
Autor
 
Texto
Data
Leituras
1216
Favoritos
1
Licença
Esta obra está protegida pela licença Creative Commons
11 pontos
3
0
1
Os comentários são de propriedade de seus respectivos autores. Não somos responsáveis pelo seu conteúdo.

Enviado por Tópico
TRIGO
Publicado: 04/04/2010 07:21  Atualizado: 04/04/2010 07:21
Colaborador
Usuário desde: 26/01/2009
Localidade: Cabeça-Boa - Torre de Moncorvo
Mensagens: 2325
 Re: todos os números.
...
olá

longe ou perto, estamos, que o coração é a única casa que temos.

Nessa quase casa
Afinal o sol que só havia nas tuas palavras

Escreves de uma forma admirável, perturbante. Virei,
sempre aqui, se me deixares

Beijo / Beijo

Enviado por Tópico
MariaDeCarvalho
Publicado: 04/04/2010 16:20  Atualizado: 04/04/2010 16:20
Da casa!
Usuário desde: 11/03/2009
Localidade: Suiça
Mensagens: 421
 Re: todos os números.
Ola Mar

Este texto está belísimo,
continuarei a lêr-te... gostei

Beijos,
MariaDeCarvalho

Enviado por Tópico
sampaiorego
Publicado: 05/04/2010 07:31  Atualizado: 05/04/2010 07:31
Membro de honra
Usuário desde: 31/03/2010
Localidade: algures virado para o mar com gaivotas
Mensagens: 1147
 Re: todos os números.
são estas camisas de forças que traçam o rumo das palavras - camisas silenciosas que apenas nas sombras sabemos ler flores.camisas de amor - hoje. vestimo-las por dentro.desbotam num tempo que não volta.

sampaio(r)ego