Com a cidade vazia, é possível até pensar, enquanto se caminha. Já fui, não sou mais, homem de fé. Mas ontem achei que devia assistir à uma procissão. Eu disse assistir, entendam. Fui à igreja Nossa Senhora Achiropita, bem perto de onde moro. Passava um pouco das seis. A procissão, fui informado,ia sair dentro de uma hora. Em frente ao templo,dois bares abertos. Num deles, cerveja, cachaça e samba comiam soltos. Confesso que gosto demais desta comunhão entre o sagrado e o profano, que, dizem os entendidos - antrópólogos, sociólogos e historiadores das religiões -, sempre existiu. E tanto isso é verdade que o pároco da igreja contava com os equipamentos de som da Vai Vai, a escola de samba do bairro, para que todos pudessem acompanhar a procissão na rua, ouvindo com nitidez os cânticos e as orações.
Os equipamentos, porém, apesar das estreitas relações entre a escola de samba e a igreja,não chegaram a tempo. O motivo não sei, mas entendo que acidentes de última hora sempre acontecem. Evidente, a procissão não deixou de sair, apesar dos resmungos indignados de algumas senhoras, que tomaram a ausência dos equipamentos como pouco caso dos diretores da Vai Vai com a Igreja. Mas, convenhamos, equipamentos de som são coisas de uma época recente. Noutros tempos, as procissões saíam sem eles e os sacerdotes se esgoelavam, horas a fio, recitando as ladainhas, comentando as catorze estações da via-sacra, puxando as cantorias - e ainda, na volta à igreja, havia o sermão, que, dependendo da inspiração do representante de Cristo, podia durar horas.
Na década de 1930, o arquiteto e artista plástico Flávio Carvalho escapou de um linchamento, no centro de São Paulo, por verdadeiro milagre.Irreverente e provocador, gênio para uns, louco de hospício para outros, ele quis testar a reação dos fiéis que acompanhavam à procissão de Corpus Christi. O teste consistia em caminhar em sentido contrário e dar de encontro com a procissão,ainda por cima sem tirar o boné. Blasfêmia total. Fiéis mais exaltados, partiram para cima do herege. E a tragédia só não aconteceu porque o artista, ainda jovem, teve pernas para chegar até um bar nas imediações e se trancar no banheiro, de onde só saiu escoltado pela polícia.
Enquanto me recordo do episódio que envolveu Flávio Carvalho, ocorrido quando eu sequer sonhava em nascer,voltou-me à memória um fato mais ou menos semelhante em que o protagonista fui eu. Com um detalhe: minha idade, não mais que seis anos, foi levada em conta. E só por isso nada de mais grave me aconteceu. Juro que o vou contar é a verdade, nada mais que a verdade.
Era Semana Santa. Viajei com meus pais, Deus os tenha, mais um grupo de amigos deles para Águas de Lindóia, no interior de São Paulo. Cidade chatíssima, mas, na época, famosa pelas propriedades terpêuticas de suas águas. Naquele tempo, os da minha faixa etária sabem, procissão era procissão. Nas casas, nas ruas, no semblante das pessoas, tudo era luto, tudo era culpa, tudo era dor. E, para dar um toque mais tétrico ao ritual, as igrejas ficavam às escuras, iluminadas apenas pelas velas, e os santos eram todos cobertos de roxo. Dos altares eram retiradas as toalhas e as flores. E não havia, como não há até hoje, a celebração de missas - apenas leituras. Dava medo, principalmente quando o silêncio era quebrado pelo som da matraca, seguido do cântico comprido e histérico da Verônica. O Cristo morto, com o rosto ensanguentado,vinha na frente, levado por membros de alguma irmandade, que disputavam essa honra quase a tapas. Atrás, aparecia a Virgem, com as espadas cravadas no coração. Depois,o sacerdote, de sobrepeliz e estola roxa, seus acólitos e por fim os fiéis.
Nenhum comércio abria. Das janelas das casas, as pessoas, também compenetradas, assistiam à passagem do cortejo. Os homens, nas esquinas, tiravam os seus chapéus, reverenciando o morto. Nas cidades pequenas, onde o fanatismo, digo, a fé era maior, caso de Águas de Lindóia, a procissão percorria os bairros principais, o que levava um bom par de horas,não pelo tamanho do lugar, mas pela lentidão com que se fazia o percurso, até retornar à matriz. E foi exatamente no largo da matriz que protagonizei talvez o maior espetáculo que a cidade das águas terapêuticas pôde presenciar durante uma procissão. Não sei se alguém o registrou, mas cá entre nós, bem que merecia.
O coreto do largo foi transformado em púlpito, para o sacerdote fazer sua homilia. O povaréu, em silêncio. Todos desgraçadamente preparados para se sentirem seres execráveis, responsáveis pela paixão e morte do filho de Deus na cruz. Até que minha mãe deu por falta de mim. Olhava para os lados, eu não estava. Começou a ficar aflita. Meu pai procurava manter a calma. Os amigos, informados do desaperecimento, saíram à minha procura, entre eles um judeu, que gostava de me ensinar palavrões. Graças a ele, apesar da pouca idade, meu vocabulário já era bastante rico em palavras obscenas.
Foi uma amiga da minha mãe, que mais tarde se casaria com o judeu dos palavrões, que veio com a notícia. Cutucou minha mãe e apontou para o coreto. O que seria um alívio, acabou se tornando pesadelo. Eu, menino de cabelos ruivos e espetados, rosto sardento, estava no coreto, bem ao lado do sacerdote, esperando o momento certo para o ataque. Minha mãe não chegou a tempo de evitar o pior. Antes que o sacerdote anunciasse a criança perdida, eu já lhe havia tomado o microfone das mãos e proferido, alto e bom som, algumas palavras de protesto e indignação: "Judeus filhos da puta. Vão pra puta que pariu. Vocês mataram Jesus."
Se minha mãe não fosse jovem, com certeza cairia fulminada ali mesmo. Não me lembro de ter sofrido qualquer castigo físico. Mas sei que retornamos todos para o hotel. E no dia seguinte, logo cedo, a São Paulo.
Meu pai morreu há quase trinta anos. Minha mãe foi embora há três meses. Ontem, na igreja, enquanto um grupo de jovens da comunidade encenava, diante do altar, as estações da Via-Sacra, eu vi, ao meu lado, o menino que fui. Cabelos ruivos, rosto sardento, inquieto,malcriado e cheio de vontades como todo filho único. Senti o desejo de abraçá-lo. Mas quando olhei para o lado, ele não estava mais. Veio-me um aperto na garganta. Não pelo Cristo morto, porque amanhã, Domingo de Páscoa, tudo vai acabar bem. E Ele vai ressuscitar, como acreditam os que têm fé. Não vou discutir dogmas e nem mistérios. Da mesma forma como fiquei na igreja o tempo necessário e acompanhei à procissão sem pedir nenhuma graça. Não teria cabimento alguém que não crê pedir graça. Até porque se Deus achasse por bem concedê-la,não estaria sendo justo. Só lamentei por Judas, culpado até hoje de uma coisa que não tenho certeza se fez de fato. Todos conheciam Jesus de Nazaré. Ele pregava na sinagoga e desafiava os doutores. Era figura carimbada. Daí, entendo, para prendê-lo não precisaria ninguém beijá-lo e apontá-lo. Mas em toda história, para que exista um herói, é necessário um vilão. Sem o vilão,o herói não existe. Duvido também que Maria tenha assistido a tudo o que fizeram com seu filho sem nenhum escândalo. Mãe judia, mais do que qualquer outra, morre pelo filho. Da mesma forma, penso que Barrabás não foi o malfeitor que a Igreja diz. Como seu xará - Barrabás também se chamava Jesus -, era um revolucionário, que queria a liberdade do seu povo, mas por outro caminho - o das armas, como eu também quis um dia. Foi pensando nisso tudo que voltei para casa. Tomei um copo de vinho, fumei alguns cigarros enquanto escrevia estas linhas e depois fui deitar com a televisão ligada. Adormeci, deixando a porta dos sonhos aberta para que o menino ruivo entrasse. Mas ele não veio.
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júlio
Júlio Saraiva