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A FAMÍLIA 33 (parte 6)

 
, um dia Lauro teria problemas e soluções duma só vez, numa só pisada, foi quando Thomas e sua mãe, depois de muitos anos sem férias, finalmente puderam dar um rolê e descansar juntos, bem longe da capital. A vacância deles só foi graças à disposição de Lauro de cuidar da casa de Thomas, com os dois cachorros e todas as tarefas subjacentes. Graças a isto e à confiança que a mãe postiça deu ao patético herói. Seria um rompimento inevitável, e por isso também necessário.
Era quase o final das duas semanas em que eles passariam em ilha bela e Lauro tinha ido muito bem até ali, mais dois ou três dias e a missão estaria cumprida. Mas era um domingo e o teatro oficina tinha algo em cartaz, motivo que o empurrou pra fora da casa de Thomas, onde dormira também todas as noites sozinho. Nesta noite ele bebeu um bocadinho além de seu alcance ideal e também participou demais das mandingas do terreiro eletrônico. Tinha ido com um amigo João que também tinha suas incursões como escritor e, ainda mais importante, como fã de todas umbandas zens sincretizáveis do mundo apanhável e também enfim do inapanhável.
João tinha um sonho ruim em que Lauro estava amarrado, preso sob camadas e camadas de alguma gaze esdrúchula, e começou a arrancar estas peles que o impediam de se mover, de ser com todas as maiúsculas acentuadas. Arrancava e arrancava freneticamente e então Lauro, que parecia sonhar talvez o mesmo sonho mas de dentro de si, despertou aflito percebendo que o amigo arrancava fotografias das paredes do quarto de Thomas que compunham o mosaico duma vida. Três ou quatro pedacinhos de papel foram rasgados da parede, fotos de Thomas com músicos amigos ou bastante renomados, discutiu-se um pouco sobre isso mas não foi muito longe. Lauro dormira bêbedo e tinha levado João pra chascar um na casa em que estava de guarda, coisa que a mãe de Thomas bem havia prevenido que não fizesse. Mas não havia muito que fazer.
Quando chegou, ficou muito brava, ao descobrir ainda alguns dias depois, à sorrateira vacilada que Lauro havia cometido. Reclamou das fotos, inicialmente pacífica, mas ele não soube mentir e contou a desgraçada da estória tentando mostrar que fora algo totalmente sem querer, que tudo estava bem pois realmente João era uma pessoa muito tranqüila e nunca faria aquilo por maldade, mas tanto fazia explicar já ou não. Ela terminou por se enfurecer, tomando aquilo por uma quebra de honra dele. Lauro também carecia e parecia desejar outros ares, depois de tanto convívio, precisa voltar ao seu isolamento, não deixar no passado tudo que conquistara, mas centrar-se outra vez em seu destino, seu sonho maior. Suas amizades por vezes turbulentas se reciclavam sempre velozmente, marmóreas. Quase seriam frios se não se julgassem suas intenções mais secretas. Podiam abandonar a realidade toda em qualquer instante pela honra, pela salvação da civilização até, mas optavam por abraçar a infinitude inexplicável como o fractal de grão de areia que tardavam realizar.
‘Um dia você cola as fotos... tira uma cópia com os pedaços e faz uma nova... eu te perdôo...’
Eles tinham trocado presentes demais, e presentes em geral que literalmente enchiam a barriga. A amizade atravessava a fronteira da caridade, eram como nascidos num mesmo berço de rubi, o feijão dela falando todas as verdades do universo.
Miles davis torava dia e noite e Lauro pensava em quando teria um espaço onde pudesse tocar sem perturbar ninguém. O dia todo todo dia, quase isso, era o quanto ele fumava, mas também seguia ciclos bastante prudentes e nunca realmente desembestava por completo, não era um fritão, era mais um bailarino cósmico sem nenhum caráter, e sobrevivia disto, agora escrevia sua primeira grande obra, ou era isto o que pensava afinal, seu primeiro projeto entre aspas mais sério e absurdamente mais pretensioso. A pretensão sempre foi a chave da fechadura pros que gostam de contar contos sobre coisas que de certo modo nunca realmente aconteciam. Até aconteciam mas num nível inapreensível e por isso deveriam ser irrelevantes, mas ele amava suas fanfarronices divinas e se estrepava frequentemente por defender valores dúbios e imorais. Mas esta era a maneira de Lauro se tornar um projeto de espartano, e louco ou semidemente, chame-se como quiser, dentro de suas malucas profecias e epifanias muito parecia se encaixar tão perfeitamente quanto no mais irretocável modelo da existência. Claro que a tecnologia só poderia comprovar suas afirmações daqui talvez três ou quatro milênios e olhe lá, mas ainda assim a maturidade da criatividade brotou desta guerras de crenças e tabus que pouco a pouco se estilhaçavam sob a artilharia pesada de seu ascetismo desbragado, safado demais.
Nenhuma medicina alcançava os efeitos que Lauro havia desenvolvido em sua treslouca rotina de dança, cânhamo e outras atividades tecnicamente inúteis num sentido corrente, porém altamente cruciais pra evolução do universo no caso de tantas intuições deslumbrantes e incontroláveis realmente terminarem se provando verdadeiras. Ele havia se tornado mais forte que o tremular de suas mãos embriagadas, havia se tornado mais poderoso talvez por causa e conseqüência de tanta extrapolação de instintos. Ele havia quem sabe alcançado um novo instinto, inédito, ou talvez perdido há milênios na névoa do anonimato, como uma engrenagenzinha independente que não permitia sua roda de valores cessar de rodar, que não admitia convicções inquebrantáveis e exigia enfim que todos os mais distantes desejos se escafedessem do coração pra darem espaço a sensações mais mundanas, mais carnais.
Em uma época já não era mais só a erva, o haxixe atracou no porto da galera da diretoria, começaram a preferir a resina por diversas razões óbvias, mais compacta, mais intensa e sutil. Mais cara, também, mas isso todos se esforçavam por não comentar.
‘Que promessas que vale a pena a gente fazer...’
Era o que ele pensava alto quando mais uma vez furava a fila da balada zen, tirava os calçados e entrava com uma comanda zerada, staff comumente diziam, acima do nome e signo, virgem, o de Lauro. Virgem também como ascendente, um peixe fora dágua poder-se-ia dizer que porém aprendera a respirar e a voar.
Uma banda começava enquanto ele atravessava o corredor ao dancefloor. Estancou no toalete esvaziando-se duma cascata e depois bebeu e bebeu da torneira, eram raízes aquáticas as dele. Muito bem tudo bem ele pensava e ronronava de alegria quando o amigo barman lhe entregava uma redonda gelada na faixa. Durante quase sete anos apenas investiria majoritariamente em maconha, não compraria pratos ou tambores novos pra sua bateria, nem mesmo baquetas, as peles rasgadas iam longe. Mas tinha controle mínimo de seu ritmo, os bailes constantes em que ele avançava durante tantos meses vinha menos e menos permeado de bebidas alcoólicas. Isto porque numa noite apercebeu-se de que as humildes cervejas inflamavam estranhamente sua sintonia, talvez fervilhassem desagradavelmente em suas síncopes espiraladas e redondiças, optou por apenas pitar. Mas também bem rapidamente se objetou a apenas sagrar quando a planta fosse limpa, livre de amoníacos dejetérios.
Quase um idiota, ou para alguns mais bem humorados, um bom poeta, Lauro tocava em frente, e num belo dia, entre Cauês e Paulinhos, conheceu o Magrão. O Magrão na verdade era bem gordinho, mas de algum jeito saudável. Era como um hippie super interado, violonista e batuqueiro de marca maior. Moravam perto, Magrão cinco minutos mais próximos de Lauro que Renato. Engataram quinta marcha, morriam de rir de besteiras intravenosas e piadas demilinguísticas surrealistas abruptas sôfregas e transmutantes. Era o novo degrau desde o nascimento do bailarino moroso. As xivas da silva levaram Lauro às esquinas da xenologia racional, da síntese do silêncio. E com Magrão agora parecia enfim desvendar as últimas cortinas de sua miséria psicológica, de sua filosofia ainda juvenil demais, flutuante demais.
Numa noite foram juntos pra noitada, Lauro como de costume oferecia uma ou outra massagem nos pés a pequenas, médias ou grandes sujeitas devidamente triadas. Amigos de amigos conhecendo amigos de amigos todas as noites e eram como pirilampos desbravando as melodias de suas carapaças de cigarras humanas.

 
Autor
alikafinotti
 
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