Crónicas : 

Uma peça de museu

 

O Seringa não sabe porque se chama assim, sabe que se chama, vive num barraco de chapa a que chama casa construído no terreno do patrão, não tem vizinhos, o terreno tem cerca de 50 hectares de terra vermelha, capim e um imbondeiro que se entorta a olhos vistos acusando longa idade, e no meio da terra está lá orgulhosa a “casa” do Seringa, em chapa de zinco e juncada de utensílios vários a toda a volta que o espaço ao contrário do calor e dos mosquitos é coisa que não abunda no seu lar. O Seringa arranjou um sofá velho e roto e com alguma paciência remendou-o e fez dele o seu trono, onde ao fim da tarde se senta e avista a nesga de mar que vislumbra no horizonte para lá do Museu da Escravatura e do transito, quando o astro-rei se ajoelha no horizonte e presta vassalagem ao seu reinado, dando lugar à lua que lhe vem velar a hora de ardor que o espera com mãe Lisa, que lavadas as latas que lhe servem de panelas, o chama em voz melíflua para o ansiado enlace.
O Seringa só não gosta quando o mandam ao centro da cidade, tem que atravessar a Samba, subir ao Prenda e descer para a Maianga montado na sua ginga que o faz comer pó, suar em bica debaixo do sol impiedoso que o castiga pela ausência do seu trono. À vinda vem pela Multiperfil, atravessa o Morro Bento e vai sair à Camama, sempre com gente em volta que lhe aturde os sentidos, e o Seringa sente o peso da solidão debaixo da bastonada de um polícia que o castiga pela manobra incauta.
- Preto também ama, chefia.- Diz-me o Seringa para vincar o seu sentir longe do seu reino e da sua Lisa.
Eu fico a pensar que o Seringa ainda não deu o passo para lá do Museu da Escravatura, a vista alcança mas ele ainda não passou para o lado de lá.
 
Autor
jaber
Autor
 
Texto
Data
Leituras
1148
Favoritos
0
Licença
Esta obra está protegida pela licença Creative Commons
12 pontos
12
0
0
Os comentários são de propriedade de seus respectivos autores. Não somos responsáveis pelo seu conteúdo.

Enviado por Tópico
RoqueSilveira
Publicado: 01/04/2010 19:55  Atualizado: 01/04/2010 19:55
Membro de honra
Usuário desde: 31/03/2008
Localidade: Braga
Mensagens: 8112
 Re: Uma peça de museu
É uma pena que estas crónicas tenham poucas leituras porque são boas e mai nada... bem escritas, com a vertente social, que apela à consciencia transformativa e tocam o coração muito mais que muitos dos poemas que aqui metem e ainda mostram uma realidade diferente da nossa, daí muito curiosas. Parabéns por isso.
Recomendo!!!


Enviado por Tópico
visitante
Publicado: 01/04/2010 21:22  Atualizado: 01/04/2010 21:22
 Re: Uma peça de museu
Zé, gostei muito desta crónica de cheiro africano.
Gosto muito da tua prosa, do teu sentir das coisas.
Foi um prazer ler este texto.
Espero pelo teu regresso para te abraçar.


Enviado por Tópico
OlemaCorreia
Publicado: 01/04/2010 21:50  Atualizado: 01/04/2010 21:50
Da casa!
Usuário desde: 14/03/2009
Localidade:
Mensagens: 277
 Re: Uma peça de museu
Sensibilizou-me esta crónica para além da qualidade da construção literária que é perfeita, e para além de serem descritos locais onde vivi, como a Maianga e por onde passei momentos de há muito, de que guardo imensas saudades, não posso ficar indiferente às questões sociais que o texto aborda por ser um povo de que me considero irmã e que anseio ver na rota do progresso, da civilização e do equilíbrio social. Felicito-o pelo seu trabalho e espero ouvir em breve um relato pessoal dessa sua estadia.

O nosso abraço
Olema/Antonius


Enviado por Tópico
Betha Mendonça
Publicado: 01/04/2010 23:02  Atualizado: 01/04/2010 23:02
Colaborador
Usuário desde: 30/06/2009
Localidade:
Mensagens: 6700
 Re: Uma peça de museu
Jaber,

Tua narrativa além de bem ambientada, ainda consegue ser poética.Dentro da ótica, ética (?) e reflexão de escravidão, Seringa e todos nós somos escravos nessa vida.
Bjins, Betha.


Enviado por Tópico
Alexis
Publicado: 01/04/2010 23:33  Atualizado: 01/04/2010 23:33
Colaborador
Usuário desde: 29/10/2008
Localidade: guimarães
Mensagens: 7238
 Re: Uma peça de museu para jaber
as mentalidades mudam lentamente ...não acompanham a vanguarda dos tempos.principalmente quando o dia-a-dia não comprova de facto que algo tenha realmente mudado...
é sempre um prazer ler-te,jaber.

abraço e vê lá se organizas um jantar quando chegares para nos contar mais dessas "visões" tão cheias de humanismo e matares saudades das coisas de cá.sim?


Enviado por Tópico
MariaDeCarvalho
Publicado: 02/04/2010 10:15  Atualizado: 02/04/2010 12:25
Da casa!
Usuário desde: 11/03/2009
Localidade: Suiça
Mensagens: 421
 Re: Uma peça de museu
Foi bom, abrir o computador e lêr uma crónica tão boa, o Jaber escreve muito bem...
Foi um prazer lê-lo...

Até breve,
MariaDeCarvalho