Crónicas : 

A vida é suja e a morte é limpa

 
Sei que não é um bom começo nem é assunto para aqui chamado, incomodar o senhor leitor com pieguices de meia tigela, mas eu tenho que dizer, senão, senão não fico bem.

Vou morrer nos próximos dias, espero apenas a luz verde para avançar por esse corredor infinito. E, espero que rapidamente me cresçam as asas. Estou farto de andar em terra! Os meus filhos, coitadinhos deles, já me estão desejando: boa viagem papá, cuidado com os esfriados lá no céu, não cometas os mesmos erros cá na terra, arranja apenas bons amigos, em vez destes que toda a vida te desencaminharam para a bebida.
A minha mulher, que é mulher de chicote, dá-lhe para chorar, ao mesmo tempo que vai desfolhando aquelas revistas, arrastando o polegar bem devagarinho quando chega àquela parte dos anúncios que começam assim: viúvo, 57 anos, carinhoso, precisa de…

Espero sim, que vá a tempo de me despedir de alguns velhos amigos e beber os últimos conhaques pela conta, já que, o estado civil de quase-morto, traz essa vantagem, ninguém nos deixa pagar. Saber que dali a uma semana se vai morrer pode ser um divertimento infantil, por exemplo: comprar electrodomésticos a crédito por doze meses, estacionar o carro onde quisermos, já que as multas vão para o tecto.

A vantagem de se morrer é que as dívidas ficam todas saldadas, os pecados são perdoados, a única dor de cabeça é só a de pensar se no céu vamos ou não vamos achar malta conhecida ou se o Frank Sinatra anda a Sinatrar e a desambarcar as melhores pitas para ele.

Alto lá!, vou morrer mas isso não significa o fim do mundo, até porque eu creio que lá em cima há bola e umas miúdas para distrair, só ficarei chateado, chateadíssimo, se não houver pataniscas de bacalhau com arroz solto de tomate, que é o meu prato preferido. Aí sou capaz de fazer revolução junto de um qualquer adjunto de deus para que esse prato seja incluído na diária.

Depois, finalmente poderei abusar de certas comidas, desta vez sem correr o risco de apanhar gastroenterites ou colesteróis, pois nunca se ouviu falar de anjos que sofram do estômago muito menos de ressacados.
Morrer tem aquela coisa, de deixar uns tristes e outros contentes. Quando eu me for vou usar pela primeira vez fato e gravata e, ao ter alguém que me vista, seja preferencialmente mulher, para que se impressione com os bíceps que toda a vida cultivei. Do meu dinheirinho que rende no banco, metade vai para ajudar a mulher a combater o luto e acabar de pagar o todo-terreno que está em nome dela.

Apesar desta minha alegria - por finalmente saber que daqui a nada vou poder olhar tudo de lá de cima sem ser visto - estou um pouco triste, pois desde puto que sonho em morrer atropelado por uma avioneta, em vez de morrer com esta trombose.

Óbvio que preferia algo mais triunfal. Afinal de contas só se morre uma vez. O que acho injusto, pois todo o homem havia de poder escolher a sua própria morte. Tipo, haver um leque, um menu de hipóteses para escolher. Sei lá, lembro assim de repente que tenho um amigo que, para ele, a melhor maneira de se morrer é a fazer amor, outro já prefere engasgamento. Enfim, opções.

As únicas contrapartidas de se morrer são: não poder ficar para o copo de água e porventura não ficar a saber quem ganhou o campeonato nessa época nem saber como vai terminar a novela das 21:00. Por outro lado, não há tabaquinho para ninguém e, na eternidade, passo a ter mais tempo para mim em vez das dez horas a trabalhar. A não ser que o Boss esteja importando negócios da China para lá.

Não quero com isto que o senhor leitor fique triste, ou a sonhar com a sua morte. Nada disso, considere isto um desabafo, pois a vida é séria e com a morte não se brinca. Quando for desta para melhor, poderei enfim, dizer adeus às micoses e às unhas encravadas. Como também direi adeus às inSónias, às inTeresas e às inPaulas.

Claro que, mais vale uma morte limpa do que uma vida suja. Morrer é um até já, só que no meu caso, antecipado. Logo, é menos esse que gasto em remédios. Peço apenas que o meu caixão vá bem almofadado por causa do meu maldito elo catorze.

De resto, podem-me levar nem que seja ao carrachucho, desde que tenham cuidadinho ao poisar, não vá eu deslocar o baço e, para mal dos meus pecados, acordar mal-humorado, ver-me dentro de um caixão, ouvir vozes de quem reza, gente que chora por debaixo de óculos escuros, o coveiro com um brilhozinho nos olhos, morto por deitar terra por cima, ver que afinal nada foi encenado e, numa sucessão de gritos mudos, acabo por morrer de susto.
 
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flavio silver
 
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Enviado por Tópico
Alexis
Publicado: 29/03/2010 18:00  Atualizado: 29/03/2010 18:00
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Mensagens: 7238
 Re: A vida é suja e a morte é limpa para flávio


beijo ao quase-morto.

Enviado por Tópico
ROMMA
Publicado: 29/03/2010 18:43  Atualizado: 29/03/2010 18:43
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Mensagens: 2460
 Re: A vida é suja e a morte é limpa
excelente o teu texto Flávio, morbido por sinal
é bom quando temos a capacidade de visualizar essa ida do poeta ou do homem que o veste
talvez isso ajude a arrumar a vida e a escrita de outro jeito, mas a verdade está no final que só em pensar quase se pode morrer de susto :)
beijo
Romma