Tornai-me a aparecer, entes imaginários,
que me enchíeis outrora os olhos visionários!
Poder-vos-ei fixar?... Tenho inda coração
capaz de se render à vossa sedução?...
Chegam... que densa turba! Envolve-me... Não posso
furtar-me ao seu triunfo. Eis-me, Visões, sou vosso.
Vai-se-me em névoa o mundo. Emanações subtis
que exalais, vem tornar-me aos anos juvenis.
Que imagens que trazeis de dias tão risonhos!...
Caras sombras! sois vós? aéreas como em sonhos?
Como recordação de lenda já perdida,
volve o amor, a amizade, e reassumem vida;
torna a dor a doer. Oh vida! oh labirinto!
de novo o mesmo sois. Já renascer me sinto.
Cá ’stão os bons d’outrora, entes que já gozaram
horas de oiro, e também... como elas se escoaram.
Não me hão-de ouvir agora os mesmos, bem o sei,
para quem noutro tempo os versos meus cantei.
Sumiu-se, aniquilou-se aquela amiga turba,
que nem com som mortiço os ecos já perturba.
Vibra meu canto agora a ignota multidão,
cujo aplauso, ai de mim! me aperta o coração;
e os a quem meu cantar outrora foi jucundo,
erram, se inda alguns há, dispersos pelo mundo.
Ai, plácida mansão, de espíritos morada!
revive na saudade, há tanto descorada!
Começa em vagos sons meu estro a palpitar,
qual de uma harpa eólia o triste delirar...
Já sinto estremeções; o pranto segue ao pranto,
e o duro coração se abranda por encanto.
O que foi, torna a ser. O que é, perde existência.
O palpável é nada. O nada assume essência.
GOETHE PRÓLOGO DE FAUSTO
TRADUÇÃO DE ANTONIO FELICIANO DE CASTILHO
1
“O palpável é nada. O nada assume a essência
De todo este universo aonde eu poderia
Pensar em ter no olhar além da fantasia
O mundo mais sutil, deveras em clemência.
Porém ao nada ter; percebo esta insolência
Do quanto desejara e quando se fez fria
A noite em que meu sonho em triste alegoria
Não deixara sequer pensar com paciência.
Perdendo o que talvez ainda me trouxesse
Quem sabe alguma luz, ou mesmo rara messe,
Não vejo nova senda a não ser a que eu tinha
E tendo este vazio, aonde percorrer
Se nada se transforma e morto algum prazer,
A sorte noutro tanto eu sei não fora minha.
2
“O que foi, torna a ser. O que é, perde existência”
E assim no quase tendo eu vejo o nada ter,
Mergulho neste abismo e nele posso ver
Somente o que já fora imensa penitência.
Percebo inútil fardo, e nele a coincidência
De um mundo mais atroz sem luz e sem poder,
Vagando em noite escura, apenas posso crer
Na sorte tão ingrata em torpe convivência.
Não quero ter no olhar um brilho traiçoeiro
Tampouco imaginar o sonho derradeiro
Que possa me levar às crenças mais vulgares.
Sem ter a direção, vagando insanamente,
O quanto desejei agora se desmente,
Deixando em névoas vãs os mais belos luares.
3
“E o duro coração se abranda por encanto”
Quando se percebendo um dia em luzes feito,
Porém se faz vazio e insano velho peito
Numa realidade em mágoa, dor e pranto,
Pudesse imaginar além do que ora canto
O amor mais desejado e nele todo o pleito
De quem tentara em vão viver mais satisfeito,
E vendo tão somente agora este quebranto
Não posso permitir caminho mais suave,
Por mais que a dor insista e o medo tudo agrave
Quem sabe no final, após a tempestade,
Bonança se aproxime e tome seu lugar.
Quem dera se tivesse ainda onde lutar,
Somente escuridão, deveras já me invade...
4
“Já sinto estremeções; o pranto segue ao pranto,”
E tudo se desfaz em grave pesadelo,
O sonho do passado, agora ao não contê-lo
Deveras inda tento, e mesmo em desencanto
Pudesse acreditar, no sol em raro manto,
Mas como? Nada tendo, estendo-me ao novelo
E tento disfarçar ousando mesmo um zelo
Que sei ser tão vazio e nele sinto o espanto
O parto sonegado, aborto dentro da alma,
Nem mesmo a fantasia ainda vem e acalma
Quem tanto se perdeu em noite escura e vã,
Percebo quão sobejo o rumo florescido,
Mas nada mais terei, semente em vago olvido,
Morrendo sem o sol, espera outra manhã...
5
“qual de uma harpa eólia o triste delirar”
Tornando um tempo audaz em solitária senda,
E quando sobre o olhar a imensa e tosca venda
A sorte se perdendo, ausente meu luar.
O gesto mais feliz, quem dera desfrutar,
Porém a solidão aos poucos já desvenda
Destroça qualquer sonho, envolve em torpe lenda
O mundo que talvez ainda possa ousar.
Mesquinha fantasia, a morte se aproxima
E nela se percebe além do que ora prima
A fonte de um momento em paz e me sereno
Tocado em minha pele, o vento imenso e frio,
Aonde a realidade, aos poucos eu desfio
Bebendo finalmente, o amor, cruel veneno...
6
“Começa em vagos sons meu estro a palpitar,”
Gerando a poesia aonde algum porvir
Talvez se demonstrasse, e quanto ao te sentir
Não pude nem sequer, talvez imaginar
Momento mais audaz, aonde em luz solar
Ouvindo esta esperança ainda aqui bramir
Por mais que amor pareça um sagrado elixir
As suas tentações eu nunca pude alçar.
E vago em noite vã, buscando alguma imagem
E apenas encontrando o que se fez miragem,
Jamais navegarei em mares tão profundos.
Pudesse ter no olhar o brilho que guiasse,
A vida não seria assim um tolo impasse,
Teria em minhas mãos, decerto vários mundos...
7
“Revive na saudade, há tanto descorada,”
A sorte que percebo em luzes mais sutis
Deixando para trás o que se fez feliz
Moldando no vazio alguma madrugada,
Depois de tanto tempo eu sinto o mesmo nada,
E quanto mais pretendo o tempo contradiz
Sonega esta esperança e a morte então se quis
Deixando mais tranqüila, o que se fez estrada.
Resgato a cada verso as sombras de um passado
Há quantas necessito um dia abençoado,
Mas tudo me traduz em dor e fúria intensa,
Não posso conceber algum sorriso em paz,
Somente a tempestade, a vida ora me traz
Quem sabe a morte seja, última recompensa!
8
“Ai, plácida mansão, de espíritos morada,”
Há quanto te desejo e nunca percebi
Que tanta fantasia ainda existe em ti,
Permita então tal sonho em noite enluarada.
Morrer e descansar, após a longa estrada
Que outrora conhecera e agora descobri
Ausente de esperança, e nela me perdi,
Descrente coração, mergulha neste nada.
E sabe que talvez ainda possa crer,
Mas tudo se transforma em tanto desprazer
Moldando este vazio aonde penetrara
Em tempestade tanta, imensa escuridão,
Sabendo que somente as dores mostrarão
O fim desta jornada, outrora bela e clara...
9
“Eram, se inda alguns há, dispersos pelo mundo”
Os sonhos mais gentis e neles esperança
Que agora se percebe ao vazio se lança
Enquanto noutra senda, eu teimo e me aprofundo.
Do quanto poderia, esparso ora me inundo
E bebo sem saber a trágica aliança
Sabendo desde quando inverna esta lembrança
Tomando sem sentir, o quanto fora mundo
Percebo o meu final e nele eu adivinho
Suprema maravilha em tosco e vão caminho,
Bebendo cada gota até fartar a mina,
Vencido pelo medo, e ainda sem saída,
O que pudesse ter no olhar em pobre vida,
Somente ato final, ainda me fascina...
10
“e os a quem meu cantar outrora foi jucundo,”
Não podem mais ouvir sequer a minha voz,
A sorte desde então, percebo mais feroz
E nela com certeza, em fardo inglório inundo.
O quanto o coração se faz tão vagabundo,
O medo não pudera apenas ser algoz,
E tendo nos meus pés ainda os velhos pós
Do quanto trafegara outrora pelo mundo.
Eu sei que nada resta a não ser o vazio
E dele quando em verso, o nada ora recrio
Percebo em solidão meus últimos momentos.
Pudesse prosseguir ainda a caminhada,
Mas quando sei que tudo ao fim me trará nada,
Deixando-me levar ao sabor destes ventos...
11
“cujo aplauso, ai de mim! me aperta o coração;”
Plateia feita em dor, alçando velhas tralhas,
E quando se percebe ao fio das navalhas
Somente esta tormenta, imensa solidão,
Aonde se pensara ainda num verão,
Diversas ilusões decerto tu batalhas
E cortas com afinco, as velhas cordoalhas,
Mesquinhas emoções, meus olhos não verão.
Eu posso caminhar em plena tempestade
E mesmo que talvez ainda se degrade
O quanto desejara em noite mais tranqüila,
Somente atrocidade é tudo o que inda temo,
No olhar extasiado eu vejo um novo demo
Que tanto me maltrata enquanto em paz desfila.
12
“Vibra meu canto agora a ignota multidão,”
Sabendo deste imenso e duro temporal
Aonde naufragara há tempos minha nau,
Sem leme, vela e rumo, aonde quis timão
Encontro tão somente a amarga sensação
Do quanto poderia e sendo mais venal
Vagando em noite fria, estrela tão banal
Moldando a cada noite imensa solidão.
Pudesse com meu canto, um dia mais feliz,
Mas nada se mostrando, apenas se desdiz
O que se fez em luz e agora vejo escuro,
Vencida cada etapa, encontro no meu fim,
O resto do que um dia imaginei jardim,
Matando pouco a pouco o sonho que procuro...
13
“que nem com som mortiço os ecos já perturba”
O coração mordaz exposto aos temporais
E quando se resume a vida no jamais,
Vagando sem destino a amarga e imensa turba,
O tempo de sonhar aos poucos se percebe
Ausente deste olhar e morto em leda senda,
O quanto do desejo ainda não desvenda
Matando em luz sombria a outrora bela sebe,
O peso do passado ainda se entranhando
Deixando para trás qualquer tosca esperança
Enquanto a dor invade e toma tudo, e alcança
O quanto imaginara ainda doce e brando.
Sombria realidade escreve em dor intensa
O que pensara outrora em paz e recompensa.
14
“Sumiu-se, aniquilou-se aquela amiga turba,”
E dela não restando ao menos um sinal,
O gozo que pensara outrora triunfal
O dia a dia toma e tudo se conturba.
Vencido caminheiro aguarda novo dia
E nele se refaz o que talvez pudesse
Mergulho no quem sabe e nada se oferece
A sombra do meu sonho, aos poucos se esvazia.
E tudo não permite um ato mais sensato
Às custas deste encanto, um dia se percorre
Em plena solidão, e nada me socorre,
A seca destroçando a fonte em vão regato.
O canto se esvaindo em tanta turbulência,
O amor já se perdendo em dura convivência...
15
“para quem noutro tempo os versos meus cantei”
E agora não sabendo o quanto valeria
O mundo que talvez expresse fantasia
Mudando num instante esta divina grei,
O quadro se tecendo em tons deveras grises,
Ao menos poderei viver outro momento
Que tanto procurara e nele um manso alento
Após quedar-me só envolto em tais deslizes.
O beijo sonegado, a morte se desnuda
E nada do que fora, ainda vive em mim,
A sorte desabando, a dor traçando enfim,
O que talvez dissesse ao menos uma ajuda.
Os versos que cantei agora tão distantes
Momentos que sonhei, eu sinto, são farsantes...
16
“Não me hão-de ouvir agora os mesmos, bem o sei,”
E quando se aproxima o fim da leda história
Apenas o vazio ainda na memória
Domina o que talvez em vão imaginei.
Soubesse deste nada ao qual já me destino
Pudesse ver na luz além de fosco brilho
O mundo aonde insano, eu teimo e mesmo trilho,
Vivendo desde já um tempo mais divino.
O gozo do vazio, a sombra do não ser,
O tempo se escoando em mãos toscas e vãs,
Eu creio que jamais verei novas manhãs
E tento alguma sorte, ao menos um prazer,
Percorro este infinito e nada se percebe,
Somente a solidão tornando inútil sebe...
17
“horas de oiro, e também... como elas se escoaram”
E não mais vejo além da imensa cicatriz
Marcada em minha pele e nela se maldiz
As sortes mais sutis nas quais já se moldaram
Caminhos para o fim aonde não se vê
Nem mesmo alguma luz e tento ainda em vão
Saber dos vendavais o rumo e a direção,
E quanto mais procuro ausente algum por que.
O caos se desenhando em cores mais terríveis,
Podando cada sonho e nele se constrói
Apenas o vazio, o medo me corrói
E deixa para trás os sonhos mais plausíveis.
Mesquinha noite entranho em luzes mais sombrias
E quando me percebo, ao fim sei que me guias.
18
“Cá ’stão os bons d’outrora, entes que já gozaram”
De toda a sorte imensa em glória sempre feita
E quando em tanto sonho algum enfim deleita
Sondando o meu futuro estrelas que guiaram
Momentos mais sutis e neles vejo o brilho
Do coração audaz aonde se mostrara
A vida mais feliz, deveras sendo clara
Caminho de ilusões, por onde ainda trilho.
Percebo nova aurora a cada amanhecer
Envolta em azulejo e tendo imenso sol,
Uma esperança trago e nela o meu farol
Podendo finalmente em paz se perceber
O que já fora outrora um ato mais sutil,
E agora em noite rara o amor se pressentiu.
19
“de novo o mesmo sois. Já renascer me sinto”
Em vossas emoções eu sei o quão dorido
O mundo mais atroz, e nele percebido
O quanto se pensara outrora ainda extinto.
Mas tudo não passando ao menos de esperança
A voz se silencia e o vago se reflete
No tanto que ora vejo e não mais me compete,
Sabendo quanto dói o medo aonde alcança
A sorte majestosa, e nela contradigo
O rumo mais audaz, aonde se fez nada,
Deixando para trás imensa madrugada
Do vento mais cruel, terrível tal castigo.
E sendo-vos; querida, amigo e ora vos tenho
Com todo este carinho e nele meu empenho...
20
“torna a dor a doer. Oh vida! oh labirinto!”
Aonde já percebo ausente uma saída,
E nela se traduz o que se fez em vida,
E agora tão somente o fim que assim pressinto.
A par desta ilusão eu sigo em contratempos
Vencido sem lutar, jamais conseguiria
Mostrar num ato insano alguma fantasia,
Que sei e não consinto em tantos frágeis tempos.
Mudando a direção do que se fez em ventos
Mortalha do passado ainda viva em mim,
Matando o que pensara em luzes e jardim,
Tornando mais cruéis, enfim meus pensamentos.
Bebendo o dissabor do nada que se vê
Deveras inda vivo, apenas sem por que.
21
“volve o amor, a amizade, e reassumem vida;”
As sortes do passado aonde em contraluz
O quanto se percebe e nada reproduz
Por mais que ainda tente a morte tudo acida.
Eu bebo do vazio e nele esta semente
Traduz no meu canteiro o quanto desejara
E o todo se transcende e torna a sorte rara,
Enquanto a realidade aos poucos trai e mente.
Visceral loucura, insânia mais completa
E nela o que talvez ainda se pudesse
Mudando num instante ouvindo noutra prece
O quadro que sombrio a glória já deleta.
Espinhos usuais nos velhos caminhares
Deixando em triste cor, os mais belos altares...
22
“Como recordação de lenda já perdida,”
A vida não se fez além da tempestade
E quando me percebo envolto em triste grade
O quanto se perdera ainda já se olvida
E nada saberei sequer do meu futuro
Aonde se talvez pudesse ter o grão
Apodrecida senda, imensa negação
Deixando o meu caminho ainda mais escuro.
O quanto se quisesse e nada se descreve
O peso do viver em minhas costas corta,
Fechando num momento a outrora aberta porta
Tornando a minha noite imersa em plena neve.
Meu verso ensandecido escuta este marulho
E nele todo o tempo, em vão, triste, mergulho...
23
“Caras sombras! sois vós? aéreas como em sonhos?”
Já não posso viver aonde se fez luta
E o coração mordaz, deveras se reluta
Mostrando tão somente instantes mais medonhos.
Houvesse em meu passado um dia mais feliz,
Quem sabe poderia ouvir tranqüilidade,
Mas nada do que tenho, ainda sinto invade
A sorte mais atroz, e nela se desdiz
O vento abençoado, oásis da esperança
Satânico desejo embrenho em noite vã,
Jamais conhecerei a cor de outra manhã
E ao medo tão somente a voz ora se lança.
Aprendo pouco a pouco a desvendar segredo
E tanto quanto posso, ao nada me concedo...
24
“Que imagens que trazeis de dias tão risonhos”
Se o nada em vós se faz e trama este vazio
Que em verso atemporal, agora já desfio,
Mergulho no passado e nele estes bisonhos
Caminhos que percorro; e o nada ao nada ligo
Paralelo traçado em tom sombrio e turvo,
E quando cada estrada em luzes, tento e curvo,
Deixando para trás o que pudesse abrigo
Insensato percebo o medo dominando
Cenário que se fez em cores variadas,
Aonde se pudesse ainda em vãs estradas
Saber de algum momento ao menos bem mais brando
Pendulares sutis, movimentos tantos
Provendo o coração em fartos desencantos.
25
“que exalais, vem tornar-me aos anos juvenis”
Perfumes que bem sei, tomando toda esta seara
Enquanto tanto brilho em voz calma declara
Tornando minha vida em glória mais feliz.
Pudesse transformar o canto em tanta luz
Teria além do sol um sol mais forte e claro,
E todo este brilhar traduz o que declaro
Na fonte maviosa aonde amor seduz
E mostra o dia a dia ainda em calmaria
Depois da tempestade, imensos temporais,
Deixando o sofrimento alheio ao belo cais
Que a fantasia gera e amor sempre recria,
Vencida cada etapa espelho eternidade
No encanto mais audaz que amor deveras brade.
26
“Vai-se-me em névoa o mundo. Emanações subtis”
Deixando no passado as cores mais suaves
E vendo tão somente o quanto agora agraves
Tornando em minha pele imensa a cicatriz.
O vago do futuro ainda em voz dolente
Matando esta alegria, e não trazendo nada
Impede que se veja ao fim uma alvorada
Neblina tão intensa agora se pressente.
O vendaval destroça imenso furacão
E o gozo feito em lava esboça o mais terrível
De tudo o que pensara outrora mais plausível
Somente os temporais deveras mostrarão
A força deste insano e insofismável canto,
Traçando a cada verso a cor do desencanto...
27
“furtar-me ao seu triunfo. Eis-me, Visões, sou vosso”
E nada mais impede a satânica luz
Que tanto me impelira e agora me conduz
Ao medo mais feroz, e sei que nada posso
Somente me calar e crer noutro momento,
Aonde poderia ao menos ser feliz,
Mas toda a minha história a vida contradiz
E nesta tempestade, adentro em desalento.
Vestindo uma ilusão há tempos não pensara
No quanto se mostrou em dores minha vida
Em trevas e terror há tanto decidida
Matando uma esperança inútil tal seara
Aonde o coração em trevas já se fez
Levado pelo vento, imensa insensatez...
28
“Chegam... que densa turba! Envolve-me... Não posso”
E nem consigo mais vencer demônios tais,
Aonde imaginara um dia em magistrais
Momentos tão sutis, agora sou destroço.
Escombros que carrego ainda dentro da alma
Escórias de um passado aonde sofri tanto,
E quando novamente eu busco a paz e canto
Somente esta ilusão invade e ainda acalma.
Pudesse ter no olhar a claridade enfim,
O mundo não seria apenas sofrimento,
Entranho-me do nada e em nada vejo o alento,
Morrendo sem o sol, pressinto este jardim,
Canteiro da esperança ausente dos meus olhos
Semente que inda vinga, apenas dos abrolhos.
29
“capaz de se render à vossa sedução”
O sonho deste incauto e tolo navegante
Por mais que ainda tente e mesmo se agigante
Diverso do meu canto o sonho de verão.
Esgarço-me vazio e nada se prevê
Somente a tempestade e o frio em vão granizo,
Distante do que quero e ainda sei preciso,
A vida se pressente ausente de um por que.
O caos domina a cena e o nada se percebe
Mergulho neste abismo em abissal formato,
E quando me concebo e trágico retrato
O vão da enorme e fosca, opaca e turva sebe,
O medo se mostrando em face plena e dura,
A noite se entornando em trágica procura...
30
“Poder-vos-ei fixar?... Tenho inda coração”
E mesmo quando sigo imerso no talvez
Deveras o que penso em toda insensatez
Moldando tão somente as cores que virão
Trazendo eterno inverno e medo a quem caminha
Por mais que a sorte mostre um rumo diferente
Apenas o não ser, é o que minha alma sente
Em noite escura e fria, e sei tanto sozinha,
Em vossos olhos creio um dia ter sentido
O brilho que ora ausento e tento perceber,
Opaca realidade entoa o desprazer,
Deixando esta alegria em torpe e tosco olvido.
Aonde se fez luta, escuto a insanidade,
Por mais que o coração ainda tente e brade...
31
“que me enchíeis outrora os olhos visionários
De um tolo sonhador em busca do futuro
E agora nesta ausência eu sinto mais escuro
E mesmo que inda tente em rumos mais contrários
Vencido pelo medo e nada se criando
O gozo mais sutil da vida se transcorre
Num ato tão atroz, e nada me socorre
Aonde se pensara um dia ameno e brando
À luz de um temporal imenso nada vejo,
Somente este vazio e nele o que pensara
Outrora em tez suave, ainda mesmo clara,
Matando dia a dia, aos poucos meu desejo.
A morte da esperança expondo-se voraz,
Levando para sempre o que trouxera a paz.
32
“Tornai-me a aparecer, entes imaginários,”
Demônios mais sutis, satânicas figuras
Em noites tão cruéis, em sombrias e escuras
Moldando a cada instante; atrozes, vãos cenários
Esqueço do que fora um dia a fantasia
E morro pouco a pouco em dores mais terríveis
Deixando para trás os sonhos mais possíveis,
Enquanto tão somente a morte ora me guia.
Escondo-me da fera exposta em armadilha
Quimera que consome o sonho mais feliz,
E nesta dor intensa a sorte contradiz
O que talvez pudesse ainda ao longe brilha.
Mordaz caricatura aonde se cultua
Exposta em noite atroz, imensa e clara lua...
De Praia para o mundo lusófono
VALMAR LOUMANN/MARCOS LOURES