Meio dia e meia hora.
E o telefone continua em silencio, parece que está sentado na fila de trás de um velório, daqueles a que vamos por bem parecer, vamos porque precisamos de ser vistos, por este ou aquele motivo, o morto esse mal conhecemos, lembrávamos-nos dele sempre que aparecia nas páginas dos jornais, embora, que por um motivo que a memória recusa lembrar já nos tenhamos cruzado com ele, em qualquer sitio mas a imagem deixada foi tão ténue, que agora ali, sentado na ultima fila do velório, o telefone se ache um paspalho, um actor de teatro apupado diariamente devido ás más representações.
E ela ali está, sentada de frente para o telefone, e sente-se o morto que o telefone vela.
Perdeu a noção do tempo, sabe que se levantou e pouco mais, nem disse bom dia ao espelho, esse é outro, um sacana de primeira que teima a todo o custo mostrar-lhe a realidade, mas quem lhe disse a ele, espelho insípido, que ela quer que lhe mostrem seja o que for. Por mais alguns minutos olhou o monstro, que a vela silenciosamente, depois deu meia volta e enfiou-se na casa de banho, tomou um duche rápido vestiu a primeira roupa que lhe apareceu e correu escada abaixo, precisava de ar puro de falar fosse com quem fosse, caminhou sem destino e deu por si a entrar na mercearia do bairro, o merceeiro homem de muitas falas olhou-a de alto a baixo e gritou, - bom dia minha senhora, - O raio do homem podia falar mais baixo, por acaso pensará que ela é surda.
-Bom dia retorquiu, como está o Sr. Manuel.
Mal minha senhora muito mal, sabe, é esta ulcera que não me larga.
Embrenhou-se pelos corredores estreitos da mercearia, por entre compotas e garrafões de lexivia, havia de tudo um pouco, a mercearia recordava o largo da fonte em dias de feira, de onde o freguês nunca saía de mãos a abanar. De vez em quando repetia maquinal-mente um sim, talvez, ou não, ao rosário de lamentações que o pobre homem ia desfiando, ele era a gota que não o largava, os impostos por pagar, os fregueses que levavam fiado e desapareciam, a mulher que tinha fugido com um caixeiro viajante fazia mais de trinta anos, não que não tivesse voltado a casar, claro que casou com a sua Mariazinha, que era uma mulher e pêras, uma daquelas que já não se fazem, mas a primeira estava-lhe atravessada nas goelas, deixá-lo por aquele pelintra a ele um homem com as suas qualidades.
Pegou no pão que precisava de levar e de novo se abeirou do balcão, onde o merceeiro continuava a tagarelar, desta vez com o homem do talho que tinha ido comprar os cigarritos.
- Pois é Sr. Manuel este vicio ainda me vai matar, até logo que a freguesia não espera, e assim como entrou saiu, correndo em direcção do talho que ficava do outro lado da rua.
O Sr. Manuel especa, olha-a de cima a baixo como se tivesse visto assombração, e replica no vozeirão que lhe é característico.
- Ó minha senhora diga-me lá, vossemecê já mora no bairro há um bom par de meses, e nunca tive o privilégio de ver o seu excelentíssimo esposo.
- Nossa Sr. Manuel, do que você se teria que lembrar agora, ó homem claro que não viu eu sou duplamente viúva.
O bom do homem olhou-a de boca aberta levando a mão á cabeça , tentando alisar os poucos cabelos que lhe restavam, fechou a boca, abriu de novo e voltou a fechar, como se tivesse mordido a língua, até que disse a meia voz.
- Duplamente viúva, ó minha querida senhora desculpe não sabia, os meus sentimentos.
- Senhor Manuel, eu sou viúva de marido vivo, e viúva daquele com quem me casarei um dia. Por isso não se preocupe.
O merceeiro nem pestanejou, ela deixou os quarenta cêntimos que custava o pão em cima do balcão e saiu no seu passo apressado.
Quando chegou a casa, olhou de relance o telefone, este mantinha-se imóvel no velório, nem uma lágrima o desgraçado deitava pelo finado.
Terriiiimmm, de um salto levantou o auscultador.
-Está sim. Ouviu-se do outro lado da linha.
- Estou
- Fala da Portugal Telecom se nos puder dispensar uns minutos gostaríamos de lhe levantar algumas questões, é um inquérito simples que estamos fazendo junto dos nossos clientes tendo em vista o melhoramento dos nossos serviços. A senhora tem alguma reclamação a fazer dos mesmos.
Então não querem lá ver, veio mesmo a calhar este inquérito, reclamação claro que tem.
- Tenho sim, retorquiu, quero reclamar contra o silêncio do meu telefone.
- Como assim, respondeu a voz do outro lado, num tom de espanto.
- Silêncio, a senhora não sabe o que é silêncio, o meu telefone passa dias e dias sem tocar. E a culpa só pode ser vossa, claro está.
- Adiante respondeu a voz, vou colocar-lhe a segunda questão.
- Qual adiante qual carapuça, enquanto não me resolverem o problema não respondo a mais nada. E desligou o bendito aparelho.
Encaminhou-se para a cozinha, mas voltou atrás e de dedo em riste dirigiu-se ao imóvel telefone.
- Ficas aí velando o morto e eu é que faço figura de parva.
Antónia Ruivo
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Era tão fácil a poesia evoluir, era deixa-la solta pelas valetas onde os cantoneiros a pudessem podar, sachar, dilacerar, sem que o poeta ficasse susceptibilizado.
Duas caras da mesma moeda:
Poetamaldito e seu apêndice ´´Zulmira´´
Julia_Soares u...
Desde há algum tempo que tenho vontade de escrever sobre a mulher, uma das muitas que preenche o quotidiano citadino, nas suas mil histórias, nos encontros e desencontros do dia a dia, inicio aqui esse ciclo, quero deixar bem claro que esta mulher, porque vai ser sempre a mesma que a autora retrata, não é ninguém e poderá ser qualquer uma de nós, vou-me basear em factos concretos numa mistura dissimulada com o irreal, factos que qualquer uma de nós mulheres, pode viver com mais ou menos intensidade. Para escrever estes contos, tenho como primeira ferramenta a observação cuidadosa das realidades,tanto sociais como humanas.
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